Na segunda-feira, o Comité dos Direitos da Criança da ONU emitiu um comentário geral sobre "direitos das crianças e ambiente, com especial foco nas alterações climáticas", que traz orientações sobre a interpretação da Convenção sobre os Direitos da Criança que encoraja a que os apelos de crianças e jovens sejam ouvidos e a sua participação na luta contra as alterações climáticas apoiada.
No documento, o Comité dos Direitos da Criança, que escrutina o cumprimento da convenção assinada por quase todos os países do mundo, considera a degradação ambiental, incluindo a crise climática, "uma forma de violência estrutural contra as crianças".
O comité afirma que os Estados devem garantir o acesso das crianças à justiça, nomeadamente através da "eliminação dos obstáculos que impedem as crianças de iniciarem elas próprias os processos".
E mais: as nações têm a obrigação de "fornecer quadros legislativos, regulamentares e de execução para garantir que as empresas respeitem os direitos das crianças e devem exigir que as empresas efectuem as devidas diligências no que diz respeito aos direitos das crianças e ao ambiente", diz o comunicado de imprensa da ONU.
O comentário vem ainda sublinhar a importância de permitir às crianças e adolescentes participar nos processos de adaptação e decisões políticas relacionadas com o seu futuro.
Clima em tribunal
"Este comentário geral tem um significado jurídico importante e de grande alcance", afirma Ann Skelton, presidente do Comité, citada no comunicado. O documento, explica a jurista sul-africana, aprofunda as obrigações dos Estados para fazer face aos danos ambientais e garantir que as crianças possam exercer os seus direitos.
"Isto engloba os seus direitos à informação, à participação e ao acesso à justiça para garantir que serão protegidas e receberão reparação pelos danos causados pela degradação ambiental e pelas alterações climáticas", detalha Skelton, docente de Direito na Universidade de Pretória e directora do Centro de Direito da Criança na África do Sul.
Todos os países da ONU, à excepção dos Estados Unidos, ratificaram a convenção de 1989 sobre os direitos da criança, que aborda questões ambientais, mas que precisava de ser actualizada, tendo em conta o ritmo das alterações climáticas.
Os comentários do comité são frequentemente citados por advogados e, por vezes, pelos próprios tribunais na fundamentação de acórdãos. "Isto pode, sem dúvida, reforçar a posição das crianças, porque agora existe um conjunto de orientações totalmente articulado que reúne tudo num só lugar", afirmou à Reuters Ann Skelton, acrescentando que também esperava que as empresas e os decisores políticos tomassem o documento como referência para as suas decisões.
Contactados pela Reuters, os advogados que representam os seis jovens portugueses que estão a levar dezenas países ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (por causa do que consideram ser a inacção dos governos em relação às alterações climáticas) consideram que o caso será reforçado. Os seis jovens serão ouvidos numa audiência a 27 de Setembro, mas a decisão do TEDH pode demorar vários meses.
Milhares de crianças ouvidas
Durante o período de dois anos de elaboração das directrizes, mais de 16 mil crianças e jovens de 121 países foram consultadas como parte de um diálogo mais alargado.
"As crianças são arquitectas, líderes, pensadoras e agentes de mudança do mundo de hoje. As nossas vozes são importantes e merecem ser ouvidas", afirmou o jovem Kartik Verma, activista dos direitos climáticos e das crianças da Índia e um dos conselheiros do Comité, citado em comunicado. "O Comentário Geral n.º 26 é o instrumento que nos ajudará a compreender e a exercer os nossos direitos face às crises ambientais e climáticas", acrescentou.
Nas consultas, a activista climática sueca Greta Thunberg pediu ao comité "para ser mais vigoroso e um pouco mais ousado", relatou à Reuters Philip Jaffé, membro do comité da ONU. E a delegação de Greta Thunberg não foi a única a apelar a uma maior ambição. "Penso que esta foi uma oportunidade perdida - é um exercício de incrementalismo em vez de dar um salto quântico em frente", afirma Kelly Matheson, directora adjunta do Global Climate Litigation da entidade Our Children's Trust, que representou 16 jovens no caso em que o estado norte-americano de Montana foi condenado.
A advogada e activista considera que a orientação do órgão da ONU se limita à meta de aquecimento de 1,5 graus Celsius estabelecida em Paris em 2015 — um aumento que, segundo ela, já é perigoso para as crianças.
A presidente do Comité dos Direitos da Criança ressalva que a ONU tinha de equilibrar as suas posições, numa altura em que alguns Estados consideram que já está a ir longe demais na sua defesa da acção climática. Algumas das disposições do documento foram reforçadas, explicou ao jornal The Guardian, mas o Comité — cujo membros "não são peritos em ambiente" — procurou manter "uma pequena margem" para que os Estados cumpram as suas obrigações.