Os tribunais são um caminho para justiça climática? Em Portugal, ainda não

Portugal é um dos países onde é mais fácil reivindicar a protecção de valores como o ambiente, mas ainda assim a litigância estratégica é míngua. Porque é que isto acontece?

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Em Portugal, os cidadãos enfrentam dois grandes problemas no domínio da justiça: a lentidão do sistema e os custos, dizem especialistas Unsplash

Para muitas pessoas e associações, o caminho para a acção climática passa pelos tribunais. Não apenas para resolver questões específicas, mas para aquilo a que se chama “litigância estratégica”: levar a cabo processos que possam ter um impacto mais amplo na jurisprudência e na aplicação efectiva das leis.

Nesta quarta-feira, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) ouviu pela primeira vez dois casos relacionados com alterações climáticas, num dia histórico para a litigância climática. Nos próximos meses, o tribunal de Estrasburgo ouvirá mais um caso – movido por um grupo de jovens portugueses e algumas ONG contra 33 países europeus – e decidirá se a inacção dos Estados no que toca à acção climática pode ou não ser considerada uma violação dos direitos humanos dos cidadãos.

A litigância estratégica, que não é uma novidade, já tem caminho feito em matéria ambiental e ganha tracção em questões mais específicas do clima. Esta tendência não surpreende Carla Amado Gomes, docente de Direito do Ambiente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. “As pessoas estão fartas de promessas, sentem que os Estados não estão a actuar, vêem os fenómenos climáticos a ser cada vez mais frequentes e pensam: 'Como é que vamos dar a volta ao problema?”

Este caminho não se faz sem obstáculos, uma vez que a ciência das alterações climáticas é bastante complexa e há um percurso não muito simples para traçar, com provas cabíveis em tribunal, a ligação entre as acções de determinados actores e a sua responsabilidade sobre os efeitos no clima. “Para haver acções judiciais credíveis, tem de haver obrigações certas”, começa por enunciar Carla Amado Gomes. “Se queremos processar o Estado por pouca acção climática, temos que dizer porque é que [o que está a fazer] é pouco.”

Francisco Ferreira, dirigente da associação ambientalista Zero, também reconhece que estes casos exigem “alguma criatividade”. “É difícil às vezes identificar quais são as obrigações de cada um dos Estados ou se estão a fazer o máximo possível.”

Fazer pensar sobre os direitos

Este emaranhado jurídico não precisa de ser razão para desistir da ideia. Francisco Ferreira sublinha a importância do mediatismo à volta destas acções e da consciencialização que promovem. “No fundo, estas acções são um pacote para dar voz a estas questões. Há um conjunto de ganhos que são importantes.”

Para Carla Amado Gomes, a litigância estratégica permite não apenas “acender holofotes para a questão climática”, como também “construir um argumentário político para proteger a natureza como um bem em si mesmo de forma mais abstracta”. É o que acontece, por exemplo, nos casos que chegam ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em que se traz o impacto das alterações climáticas para a lógica dos direitos fundamentais, ou seja, os direitos humanos – “das pessoas” – de forma mais directa.

Aliás, a docente explica que as decisões do TEDH em matérias ambientais recorrem a alguns “artifícios”; é através da invocação de direitos fundamentais (individuais), como o direito à vida ou ao respeito pela vida privada e familiar, que o TEDH tem defendido a promoção de um ambiente saudável, que não é um direito consagrado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Há, portanto, jurisprudência do tribunal que “escreve verde por linhas tortas”, brinca a investigadora.

Nestes momentos em que se procura “criar jurisprudência à escala internacional”, salienta Francisco Ferreira, estes casos ajudam também a despertar a reflexão colectiva não apenas sobre o direito aplicável, mas também sobre se o sistema existente é capaz de fazer justiça – neste caso, justiça climática.

Último recurso?

Em Portugal, a associação Último Recurso também quer fazer avançar esta história. Nas próximas semanas espera-se que esteja tudo pronto para avançar com um processo administrativo contra o Estado português pelo incumprimento da Lei de Bases do Clima. Maria Paixão, do departamento jurídico, explica que a equipa tem estado a todo o gás a olhar com particular atenção para as questões científicas, tendo contado com a colaboração de investigadores.

Depois de instaurado o processo, prevê-se um longo caminho nos tribunais administrativos. Maria Paixão acredita que “a decisão da primeira instância não seja tão demorada como isso”, mas a associação já conta que, mesmo que a primeira fase seja bem-sucedida, “é nas instâncias superiores que se arrasta mais”. E haverá um problema que ainda não houve em Portugal: os juízes portugueses já têm experiência em matérias ambientais, mas não estão “tão ambientados à matéria climática”.

Em matéria de direito ambiental, explica a jurista, as alterações climáticas vão surgindo a título complementar, como se viu, por exemplo, na decisão relativa ao plano de construção de um aeroporto no Montijo, em que o foco era de âmbito ambiental. “Não temos ainda nenhuma decisão com foco central no clima”, explica.

Contexto jurídico privilegiado

Além deste trabalho de litigância climática, a associação Último Recurso tem dado apoio jurídico a outras associações e a colectivos dentro do movimento pela justiça climática (por exemplo, activistas detidos no âmbito de acções de rua) e tem actuado em questões não judiciais, em casos em que as associações seguem a via administrativa para pôr em causa a actuação de autoridades locais.

Aliás, explica Maria Paixão, “uma das vantagens em relação a este tópico em Portugal é que está consagrada a acção popular para protecção de valores como o ambiente”. Ou seja, qualquer cidadão ou colectivo pode iniciar uma acção judicial para protecção de valores, entre os quais o ambiente, mesmo que não seja uma das pessoas ou entidades afectadas directamente. “É uma facilidade que existe em Portugal e que não existe noutros ordenamentos jurídicos”, descreve a jurista.

“Em Portugal, a legitimidade é escancarada”, reforça Carla Amado Gomes. O que acontece então para que tão poucos processos semelhantes sejam abertos? A docente reconhece que haverá alguma falta de informação, mas por “falta de abertura do sistema não é”.

E agora, com a Lei de Bases do Clima, que define metas concretas para os próximos anos (e décadas), poderá haver acções climáticas em Portugal, nos tribunais administrativos, caso uma pessoa ou colectivo considere que “houve inércia ou insuficiência de acção” no cumprimento da lei.

O que não significa, explica a docente, que as acções tenham sucesso: “Se houvesse uma acção por inércia do governo na adopção de medidas até 2030, o que os tribunais poderiam dizer neste momento é: ‘Dêem tempo ao Estado’. Se acontecer em 2028, aí a resposta pode ser outra…”

…mas há falta de meios

Maria Paixão recorda que em Portugal os cidadãos enfrentam dois grandes problemas no domínio da justiça: a lentidão do sistema e os custos que, com a longevidade dos processos, acabam por ser acrescidos. Existe ainda falta de informação sobre questões ambientais e climáticas de forma mais específica, mas, antes disso, falta “literacia jurídica” sobre as vias que as pessoas podem utilizar para fazer valer os seus direitos.

Há ainda uma questão fundamental: faltam advogados especialistas em matérias climáticas (ou mesmo ambientais) disponíveis para este tipo de casos. E não é apenas por ausência de mãos. Francisco Ferreira recordou a dificuldade de encontrar escritórios de advogados que não alegassem conflitos de interesses quando a Zero precisou de apoio jurídico para o processo movido pela associação para exigir a avaliação ambiental estratégica para a eventual construção do aeroporto do Montijo.

“Se houvesse da parte dos escritórios de advogados, de advogados e de juristas, uma disponibilidade maior, não tenho dúvidas que teríamos muito mais acções nos tribunais nacionais e internacionais do que temos”, afirma o dirigente. “Há uma margem de manobra enorme para agarrar casos destes do ponto de vista ambiental e climático, haja advogados que não tenham estas amarras para poderem avançar.”

Carla Amado Gomes fala ainda sobre um problema de monta: a baixa oferta de formação em direito do ambiente nas faculdades de Direito. A cadeira de Direito do Ambiente não é obrigatória nas faculdades de Direito portuguesas, e em muitas delas é até inexistente. “Não formando juristas conscientes, não temos actores no mercado e na justiça”, explica. O problema também se estende aos magistrados, que serão convocados a analisar estas questões muito complexas, e que precisam de mais apoio e formação para “compreender o âmago das questões que lhes são apresentadas”, sem se refugiarem em questões processuais menos claras, como a legitimidade ou a jurisdição.

“Se não há advogados bem formados, que conheçam estas armadilhas, as coisas não passam, não se faz jurisprudência. Os advogados também precisam de um discurso que consiga furar a muralha”, conclui a docente.