A memória do cinema, hoje, parece estar no streaming

Três documentários que não chegaram às salas confirmam que o pequeno ecrã é hoje o lugar da memória do cinema: Peter O’Toole, Richard Harris e Sergio Leone são os seus homenageados.

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The Ghost of Richard Harris, de Adrian Sibley, pode ser visto nos canais por assinatura TVCine DR
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Saboreemos a ironia: grande parte do documentário que se faz hoje sobre a história do cinema existe graças às plataformas de streaming, onde parece encontrar o seu habitat natural — são muitos, por exemplo, os títulos com a chancela da HBO ou da rede Sky. Irónico, mas não é descabido — num momento em que o cinema parece ter adoptado a lógica da série televisiva com os seus múltiplos franchises, spin-offs e reboots, a televisão passou a ser o sítio dos “filmes do meio” ou “de prestígio” que parecem já não ter espaço nas salas, e também um guardião (muito amador, mas pronto) da história, com a disponibilização de filmes de catálogo (nem sempre os mais interessantes, mas pronto) e dos documentários de memória.

Três exemplos disso chegaram há pouco às plataformas em Portugal. The Ghost of Richard Harris, de Adrian Sibley, que teve estreia mundial no Festival de Veneza de 2022, e Peter O’Toole: Along the Sky Road to Aqaba, de Jim Sheridan, podem ser vistos nos canais por assinatura TVCine e no seu serviço VOD TVCine+. Sergio Leone, o Italiano Que Inventou a América, de Francesco Zippel, também oriundo de Veneza 2022 (e que esteve na Festa do Cinema Italiano), está no streamer SkyShowtime. Três filmes que exploram a “zona” temporal das revoluções do cinema dos anos 1960/1970 através de figuras que fizeram a “ponte” entre o antigo e o moderno, o passado e o (então) presente.

Sergio Leone (1929-1989), o homem que reinventou o western e influenciou toda uma geração de cineastas com o seu lirismo operático e sanguinário, era filho de cineasta e começara carreira no então bem oleado sistema de produção italiano, antes de fazer detonar as convenções do filme de género. Peter O’Toole (1932-2013) já tinha uma carreira de teatro e cinema antes de Lawrence da Arábia (1962), de David Lean, o revelar internacionalmente, e rapidamente se tornaria o seu próprio produtor, escolhendo os projectos em que se investia (nem todos evidentes, como foi o caso do seu aristocrata megalomaníaco de A Classe Dominante). Richard Harris (1930-2002), também ele vindo do teatro, saltaria para a ribalta em plena explosão dos angry young men e do Free Cinema britânico, através de O Jogador Profissional (1963), de Lindsay Anderson, escolhendo ir para Hollywood rendibilizar o seu sucesso com filmes como Camelot ou O Homem Chamado Cavalo.

Destinos de certo modo paralelos, figuras “maiores do que a vida", que os três filmes desenham, com maior ou menor desenvoltura, dentro do formato tradicional que conjuga entrevistas e excertos da obra. O que os diferencia é o modo como abordam esse formato.

O mais interessante é The Ghost of Richard Harris, onde Adrian Sibley recorre a entrevistas do actor irlandês e põe a sua carreira e vida em diálogo contemporâneo com os três filhos, Jared, Jamie e Damian. É o título que cria um retrato mais cheio e conseguido do actor enquanto pessoa, e do modo como a vida e a arte se cruzaram num actor que gerações mais recentes apenas lembrarão como o professor Dumbledore dos primeiros filmes de Harry Potter ou de Gladiador.

Along the Sky Road to Aqaba é, surpreendentemente, o mais fraco, apesar de ser dirigido por um cineasta de créditos firmados (o irlandês Jim Sheridan é o autor de O Meu Pé Esquerdo ou Em Nome do Pai). Ressente-se de alinhar de modo excessivamente convencional entrevistas (que incluem Anthony Hopkins, Derek Jacobi, Brian Cox, ou a sua primeira esposa, a actriz Siân Phillips), e perde-se em excesso nos episódios mais ou menos caricatos.

O Italiano Que Inventou a América, produzido pela família do realizador, encontra um equilíbrio sólido entre a biografia e a análise da importância que Leone teve para o cinema contemporâneo, escolhendo criteriosamente as imagens de arquivo e entrevistando admiradores com muito para dizer como Quentin Tarantino e Martin Scorsese, os actores que dirigiu (entre eles Jennifer Connelly e Robert de Niro). Todos eles, contudo, merecem ser vistos pelo olhar sem nostalgias serôdias que lançam sobre um período que moldou de muitas formas o cinema que se fez no último meio século.

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