Carla Sousa e a chanfana que trazia Cabo Verde a um bairro de Lisboa

As memórias de infância da chef do Rio de Prata passam por uma horta com animais, receitas com cabra velha e mil e uma formas de cozinhar o milho.

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Chef Carla Sousa na horta do pai, Francisco, em Carnaxide MATILDE FIESCHI
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Carla Sousa, os pais e os irmãos viviam no Alto do Montijo, em Carnaxide, concelho de Oeiras, mas era como se vivessem no meio do campo. Havia uma horta e havia animais. “Tínhamos galinhas, patos, perus, ovelhas. Só não havia porcos porque isso implicava uma logística maior”, conta a chef do Rio de Prata, em Lisboa, junto ao Tejo.

Era sobretudo o pai quem mantinha vivas as memórias de Cabo Verde, de onde tinha vindo para trabalhar em Portugal (e, por isso, esta “receita da avó” é, na realidade, um cozinhado do pai). A mãe e dois irmãos vieram oito meses depois e os mais novos já nasceram cá, muito ligados “aos costumes portugueses” porque o pai entendia que isso era importante, mas sabendo que não queriam perder “a essência, a raiz” cabo-verdiana.

Por isso, tudo o que tivesse que ver com essa terra de origem dos pais era “como se fosse um luxo, uma coisa tão nossa, vivida intensamente”. E a cozinha estava no centro dessa vivência. “O pai sempre transportou memórias de Cabo Verde, onde tudo era aproveitado, não se desperdiçava nada e onde quem tinha uma cabra guardava-a como se fosse coberta de ouro.”

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A família de Carla Sousa sempre cultivou legumes e criou animais, mesmo depois de vir para Portugal MATILDE FIESCHI?

Por isso, quando matavam uma cabra, Carla e a família faziam o mesmo ritual de aproveitar todo o animal. A melhor carne ia para fazer a chanfana e a parte do osso era cozinhada e servida com a massa de totoco (milho). “Era um prato bastante substancial”, feito com a farinha de milho e ao qual se podia juntar batata ou mandioca. “Ficávamos logo almoçados e jantados”, diz, rindo-se. E ainda, com “a cabeça da cabra desfiadinha” fazia-se a sopa de loron.

Na parede da casa, havia uma imagem de A Última Ceia e o pai brincava: “Se não comerem tudo, o santo vai ficar zangado.” O milho já era tarefa que cabia à mãe, com a ajuda dos filhos. Era preciso debulhá-lo, retirando-o da espiga e colocá-lo no pilão de cimento fundo, para proceder à operação de separar a parte do farelo do milho. “Era um trabalho feito por duas pessoas, batia cada uma à vez. E nós dançávamos, cantávamos.”

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O pai de Carla manteve vivos nos filhos os sabores e as histórias de Cabo Verde MATILDE FIESCHI?

Carla tem as melhores memórias desses momentos passados em família, festejando as práticas e os sabores de uma terra onde não viviam mas que, de muitas formas, fazia parte das suas vidas, mesmo sendo os únicos cabo-verdianos entre os vizinhos do Alto do Montijo.

O milho bom era guardado para fazer a cachupa, o farelo era dado às galinhas, e o resto ia para a massa do totoco, em bolinhas ou tiras e a farinha do carolo, mais rala, era usada para a sopa de loron. Mas o trabalho à volta do milho não terminava aí: ainda se aproveitava parte para fazer cuscuz, que era cozinhado a vapor num vaso de barro com furinhos e o resultado, em generosas fatias, “alimentava os pequenos-almoços e os lanches de família”, porque, já se sabe, “numa casa cabo-verdiana não pode faltar o milho”.

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Os momentos de encontro da família continuam a fazer-se em torno da comida MATILDE FIESCHI?

Carla cresceu, tornou-se chef de cozinha, saiu do bairro, mas os pais ficaram lá. A horta da sua infância, com todos os animais, já não existe, mas o pai cuida hoje de uma horta comunitária onde continua a cultivar muitos vegetais e onde tem até cana-de-açúcar — e, claro, o milho, que, depois de algumas dificuldades iniciais, hoje cresce ali feliz. E a família continua a ter o ritual de se juntar para ir apanhar as ervilhas, as favas, a batata-doce, as cebolas, e fazer um grande cozinhado, todos juntos outra vez.

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