O nosso grupo

Nunca combinávamos estar juntos, mas acontecia. Nunca planeávamos férias conjuntas, mas era um pacto mudo. Adultos, crianças, bebés, cães.

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"O nosso grupo desapareceu. Uns cresceram, outros desentenderam-se" Daniel Jurin/pexels
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Lembro-me de ir passar férias com o meu pai para uma praia e de sermos só os dois.

A pouco e pouco eu já fazia castelos com outras crianças e o meu pai já conversava à beira-mar com mais pessoas. Outras toalhas começaram a rodear-nos. E gradualmente, assim como a maré vai enchendo, quase sem darmos por isso, criou-se “o nosso grupo”. Formávamos uma comunidade de toalhas e de chapéus-de-sol. Um enxame.

O que determinou que aquelas pessoas se tivessem escolhido a ponto de ficar estipulado que se deitariam lado a lado durante o Verão? Era um mistério. Mas a tradição renovava-se anualmente. Não via aquelas pessoas durante o resto do ano. Mas ali, naquele período e naquele espaço específico da praia, éramos um grupo inseparável. Às vezes, ouvia-se alguém, criança ou adulto, proferir, não sem um certo orgulho, a expressão “o nosso grupo”. Uma sensação de protecção, uma vaidade de pertencer. A praia toda parecia regida por essa ordem. Grupos, pequenos ou maiores. Imaginava que, caso se iniciasse ali uma guerra, teríamos o nosso batalhão. Uma guerra de pessoas seminuas, a esgrimir chapéus-de-sol e a proteger-se atrás dos pára-ventos.

Às vezes, um elemento de um outro grupo aparecia tímida e inexplicavelmente perto das nossas toalhas, aproximava-se, e era acolhido por nós. O grupo ia-se expandindo organicamente, sempre em cumplicidade silenciosa.

Nunca combinávamos estar juntos, mas acontecia. Nunca planeávamos férias conjuntas, mas era um pacto mudo. Adultos, crianças, bebés, cães. Jogávamos à bola, fazíamos carreirinhas, partilhávamos bolas de Berlim, jantávamos fora e ocupávamos o restaurante todo. O grupo das crianças fazia piscinas, o dos adolescentes começava a sair à noite, o dos adultos bebia medronho e conversava noite fora.

Dávamos o nosso grupo por garantido. Bastava chegar à praia e juntar as toalhas àqueles que tinham chegado primeiro. Se não tivéssemos protector solar, alguém emprestava. Se quiséssemos jogar raquetes, alguém queria também. Se tivéssemos um escaldão, alguém avisava. Se se levantasse vento ao fim do dia, alguém tinha uma camisola. E se tivéssemos fome, havia sempre alguém pronto a estender-nos um Tupperware com uvas ou um panado frio.

Sentávamo-nos em pequenas rodas onde falávamos do ano que tinha passado, das notas que tínhamos tido, do que íamos fazer no ano a seguir. Havia quem cantasse, quem jogasse cartas, quem fizesse ioga e quem trouxesse vinho para o fim do dia.

Nessas férias, eu vivia uma felicidade imaculada e percebia um sentido de tribo e de comunidade que não voltei a sentir.

O nosso grupo desapareceu. Uns cresceram, outros desentenderam-se. Uns deixaram de gostar daquela praia, ora porque tinha muita gente, ora porque tinha muito vento, ora porque o período de férias já não coincidia, ora porque queriam estar sossegados.

Agora não tenho grupo. Sinto-me meio desorientada, a escolher o destino, o sítio da praia e a quinzena para ir com as minhas filhas. Não sei se é de mim ou se o mundo mudou. Não sei se as pessoas já não gostam tanto de andar em grupo, ou se já todos têm grupos e eu perdi o comboio, ou se têm os seus caminhos individuais, os seus programas específicos solitários.

Sinto falta de partilhar sanduíches de pasta de atum, de um bom jogo de raquetes de fim de dia, de me deitar ao lado de outras pessoas e sentir que estamos todos vivos juntos.

Há um sentimento de desilusão que não me larga nestes dias, e a única coisa em que penso, como uma velha saudosista, é que as bolas de Berlim já não sabem ao mesmo.

Quando chego à praia, agora, sou eu e elas. Estendo a toalha e vejo-as a fazer castelos. Se tiver um pouco de sorte, pode ser que nasça um grupo.

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