Made in Russia? Carros chineses impulsionam renascimento das fábricas russas

Seis fábricas na Rússia, que eram anteriormente propriedade de fabricantes de automóveis europeus, japoneses e americanos, estão agora a produzir modelos chineses ou têm planos para o fazer.

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Os Moskvich, que saem da vasta Fábrica de Automóveis de Moscovo, no sul da capital russa, não têm qualquer semelhança com os modelos metálicos da era soviética Reuters/MAXIM SHEMETOV

O relançamento de um automóvel clássico da era soviética, o Moskvich, por uma empresa estatal, em Novembro, foi celebrado pelo Presidente da Câmara de Moscovo como uma prova da resistência da indústria automóvel russa às sanções ocidentais.

“Este é um acontecimento histórico”, disse Sergei Sobyanin quando o Moskvich foi apresentado numa fábrica que o governo de Moscovo comprou ao construtor automóvel francês Renault no ano passado por apenas um rublo (1 cêntimo). “Muitas pessoas pensaram que era o fim da indústria automóvel russa.”

Mas o renascimento da Moskvich é também um sinal do crescente domínio da China sobre um importante sector da economia russa. Os Moskvich, que saem da vasta Fábrica de Automóveis de Moscovo, no sul da capital russa, não têm qualquer semelhança com os modelos metálicos da era soviética.

Os elegantes SUV de quatro portas exibem peças de motor e estofos da JAC Motors da China. Duas fontes, que pediram para não serem identificadas por não estarem autorizadas a falar com os meios de comunicação social, disseram à Reuters que o modelo Moskvich 3 é um JAC Sehol X4 montado em Moscovo e utilizando kits comprados a um parceiro chinês.

A Moskvich disse num comunicado no mês passado que os seus modelos 3 e 3e são produzidos utilizando a montagem de grandes unidades — onde os carros são construídos numa fábrica no estrangeiro, antes de serem exportados e finalizados na Rússia. A empresa afirmou que trabalha com um “parceiro estrangeiro”, mas não confirmou a ligação com a JAC.

“A localização da produção está a aumentar gradualmente”, disse a Moskvich à Reuters, acrescentando que espera iniciar uma segunda fase de produção no final deste ano ou no início de 2024, envolvendo soldagem e pintura na fábrica de Moscovo, incorporando um conjunto mais amplo de fornecedores locais com componentes russos.

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JAC Sehol X4 DR
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Moskvitch 3 REUTERS/Evgenia Novozhenina

A JAC, com sede na província oriental de Anhui, não respondeu aos pedidos de esclarecimentos.

Um negócio lucrativo

Os fabricantes de automóveis chineses estão a conquistar quota de mercado na Rússia, aproveitando a saída dos operadores ocidentais que costumavam dominar o mercado antes da invasão da Ucrânia, segundo dados da indústria automóvel.

Os automóveis chineses importados representam agora 49% do mercado russo, atingindo as 40.000 unidades em Junho, em comparação com uma quota anterior à guerra de apenas 7%, em Junho de 2021, de acordo com dados da empresa de análise Autostat.

Trata-se de um negócio lucrativo. As exportações de automóveis de passageiros das montadoras chinesas para a Rússia em Janeiro-Maio de 2023 aumentaram 5,2 vezes em relação ao ano anterior, para quase 3,6 mil milhões de dólares (3258 milhões de euros), de acordo com estatísticas alfandegárias chinesas, incluindo exportações no valor de quase mil milhões de dólares (905 milhões de euros) somente em Abril.

Para além destes números, as empresas chinesas estão também a aumentar as suas vendas na Rússia com a montagem de veículos em fábricas desocupadas por empresas como a Renault e a Nissan, aponta a Reuters.

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Reuters/MAXIM SHEMETOV

A Reuters falou com duas empresas e quatro fontes familiarizadas com o assunto, que disseram que seis fábricas na Rússia que eram anteriormente propriedade de fabricantes de automóveis europeus, japoneses e americanos (ou que montavam os seus veículos) estão agora a produzir modelos chineses ou têm planos para o fazer.

No total, as seis fábricas têm uma capacidade anual de cerca de 600 mil automóveis, segundo cálculos da Reuters.

O Ministério da Indústria e Comércio da Rússia não respondeu a um pedido de comentário.

Vladimir Bespalov, um perito independente no sector automóvel, afirmou que a presença crescente dos fabricantes de automóveis chineses beneficia a Rússia, permitindo-lhe reiniciar a produção nas fábricas paradas e manter os trabalhadores empregados. O Presidente Vladimir Putin afirmou que, em 2020, o sector empregava cerca de 300 mil pessoas.

“Algumas tecnologias serão transferidas, outras serão locais, mas não serão as tecnologias mais avançadas”, disse Bespalov. “Mas, tendo em conta que não há mais nada, isto já é bastante.”

Kits de montagem importados

Depois de uma década caótica, após o colapso da União Soviética em 1991, a Rússia encorajou os fabricantes de automóveis ocidentais a construir fábricas. Ofereceu subsídios aos que realizavam operações como estampagem, soldadura e pintura localmente, assim como os incentivou a produzir componentes no país.

Em 2021, a produção nacional rondava os 1,4 milhões de automóveis de passageiros — cerca de metade da sua capacidade instalada. No ano passado, essa produção caiu para apenas 450 mil veículos — o pior resultado da indústria desde o colapso da União Soviética — à medida que as empresas ocidentais se retiraram na sequência da guerra na Ucrânia.

Os automóveis produzidos internamente representam agora menos de 40% do mercado automóvel russo, segundo o Governo, em comparação com 70-75% antes da invasão da Ucrânia por Moscovo.

“Sem dúvida, a expansão dos fabricantes de automóveis chineses no mercado russo vai continuar”, disse Andrey Olkhovsky, director da cadeia de concessionários Avtodom. “Não há alternativas para a indústria automóvel russa.”

A Avtodom, que comprou as filiais da Mercedes-Benz na Rússia, está em conversações com vários fabricantes de automóveis chineses sobre a montagem de um automóvel chinês de qualidade superior na antiga fábrica do fabricante alemão em Moscovo e um parceiro poderá ser anunciado até ao final do ano, adiantou Olkhovsky num e-mail.

É uma mudança radical de sorte para os fabricantes de automóveis chineses na Rússia. A produção de veículos chineses só começou na Rússia em 2019, com a chegada da empresa automóvel chinesa Great Wall Motor.

As vendas dos seus automóveis Haval, produzidos na sua fábrica de Tula, representam actualmente quase 10% do mercado russo. A Great Wall recusou-se a comentar o assunto para este artigo.

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REUTERS/Maxim Shemetov

Seis das dez principais marcas por quota de mercado na Rússia são fabricantes de automóveis chineses, como a Haval, a Chery e a Geely, de acordo com os dados de vendas mensais de Junho da Autostat.

Menos factores de produção locais

No âmbito da parceria com as empresas chinesas, a produção das antigas fábricas ocidentais é actualmente reduzida na Rússia, segundo as fontes.

O fabricante de automóveis russo Sollers afirmou, em Novembro, que tinha começado a produzir carrinhas Atlant e Argo na sua fábrica de Tatarstan, a cerca de 440 quilómetros a leste de Moscovo, que anteriormente produzia carrinhas Ford Transit.

A Sollers não mencionou qualquer parceiro. De acordo com outra fonte, que pediu para não ser identificada, a JAC está também a fornecer kits de montagem para os veículos comerciais.

A fonte, que trabalha numa concessionária da Sollers, disse que o Atlant e o Argo são versões rebaptizadas dos modelos Sunray N25 e N35 da JAC: “Há diferenças, sim, como os logótipos no volante e no capot.”

A Avtovaz, o maior fabricante de automóveis da Rússia, que adquiriu a fábrica da Nissan em São Petersburgo em Fevereiro, iniciou a produção do seu modelo Lada X-Cross 5 em cooperação com o que designa por “parceiro de Leste”.

Uma fonte próxima da empresa disse à Reuters que o veículo utilitário compacto Bestune T77, do grupo chinês FAW, está a ser utilizado para produzir os automóveis Lada no local. A FAW não respondeu às perguntas da Reuters. A Avtovaz não quis comentar, mas afirmou publicamente que planeia iniciar a produção local em 2024, utilizando peças de fornecedores de São Petersburgo e da região de Leninegrado.

De olho no renmimbi

Quando as empresas ocidentais se retiraram da Rússia no ano passado, Moscovo orquestrou a aquisição de activos estrangeiros por entidades controladas pelo Estado, para garantir a continuação da produção do vital sector.

O Governo, no entanto, tem ignorado o papel significativo da China na recuperação do sector automóvel, após uma queda de 59% nas vendas no ano passado, anunciando, em vez disso, o renascimento de marcas russas bem conhecidas.

“O primeiro passo é o Moskvich, para além do Lada”, disse o ministro da Indústria e do Comércio, Denis Manturov, à agência noticiosa RIA no mês passado. “Espero que o Volga os siga já no próximo ano.”

O Banco Central é um dos poucos organismos estatais a reconhecer a crescente influência da China. Num relatório de meados de Julho, referiu que várias fábricas no centro e noroeste da Rússia, que estavam paradas no ano passado, estão agora a produzir “carros baseados em modelos chineses (...) sob as suas próprias marcas”.

“Se, no passado, os automóveis do Japão e da Europa dominavam, actualmente mais de 70% das importações são provenientes da China”, refere o relatório.

Com a produção interna russa cada vez mais dependente da importação de kits de montagem da China, os lucros estão dependentes da taxa de câmbio do yuan, disse uma fonte próxima de uma das fábricas.

“A primeira coisa que se vê de manhã é a taxa de câmbio do renmimbi [a moeda oficial doa China], porque as margens e os preços dependem disso”, concluiu a fonte.

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