O difícil problema das discriminações positivas

O legislador português tem contemplado amplamente discriminações positivas com base em fatores pessoais. Infelizmente, nenhum escrutínio tem sido feito sobre a matéria.

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As discriminações positivas são ainda discriminações. De resto, só por convenção se distinguem discriminações positivas de negativas, já que distinguir favoravelmente um grupo ou categoria de pessoas traduz-se necessariamente em distinguir desfavoravelmente outro ou outros. As avaliações rigorosas que devem rodear o seu estabelecimento – a ser feitas pelo legislador ou, em sede de controlo deste, pelo Tribunal Constitucional – agudizam-se especialmente no caso de as ditas serem feitas com base em fatores pessoais distintivos como o sexo, a raça ou a idade.

O especial escrutínio a que devem estar sujeitas discriminações, também positivas, feitas com base em tais “categorias suspeitas” de há muito se encontra assumido em muitos ordenamentos jurídicos. Assim, o Supremo Tribunal americano considera há décadas (assim desde muito antes da sua atual composição conservadora que invalidou a chamada “affirmative action” no acesso às Universidades) que as ditas se encontram sujeitas a “escrutínio estrito”. Ou seja, para que se possam aceitar, não basta que tais discriminações tenham uma “justificação racional”, impondo-se ainda que prossigam um “interesse estadual poderoso” (compelling state interest) e que sejam “definidas restritamente” (narrowly tailored).

O Tribunal Constitucional Federal alemão desenvolveu também uma fórmula particularmente exigente de controlo do legislador (a chamada “nova fórmula”) especialmente apta a tratar discriminações com aceção de pessoas. Nos seus termos, tais discriminações, não apenas têm de ter fundamento racional (ser “não arbitrárias”), como deve ainda corresponder-lhes uma medida distintiva estritamente necessária (menos lesiva da igualdade sem aceção de pessoas que outra suscetível de ser usada) e adequada (em termos que estritamente cumpram o seu propósito). Transpondo este teste para a recente proposta de “paridade” ao nível da composição do Tribunal Constitucional, dificilmente se pode ter como “necessário” que a Assembleia da República – que tem nas suas mãos o poder de eleger 10 dos 13 juízes que o compõem – distinga ab initio categorias de pessoas pelo sexo, o que foi justamente lembrado por Vital Moreira.

O legislador de revisão constitucional português – mal ou bem, não interessa agora – definiu um regime excecional de promoção de “igualdade” no acesso a “cargos políticos”, suscetível de ser lido enquanto legitimando “regimes de quotas”. Implicando tal solução uma derrogação do princípio da igualdade (recorde-se que o artigo 13.º, n.º 2, da Constituição estabelece, não apenas que “ninguém pode ser prejudicado” em função de fatores pessoais distintivos, como também que “ninguém pode ser beneficiado” em razão dos mesmos), não se pode deixar de considerar tal solução como excecional e, portanto, como insuscetível de aplicação analógica.

Não se pretende excluir assim que, por interpretação constitucional compatibilizadora do princípio da igualdade com outros princípios, possam ser admitidas discriminações positivas, mas afigura-se claro que as mesmas terão sempre de sobreviver a um escrutínio severo, nomeadamente a rigorosas avaliações de necessidade e de adequação. Note-se que não pensamos aqui na “paridade” no Tribunal Constitucional, já que aí um outro obstáculo constitucional, muito dificilmente ultrapassável, se colocaria ao respetivo estabelecimento por lei. Na verdade, as questões que se prendem com a composição do mesmo órgão, enquanto órgão de soberania, são reserva de Constituição, não podendo ser deixadas ao legislador.

Em qualquer caso, o problema que assim se coloca está longe de se esgotar na questão relativa à composição do Tribunal Constitucional. Na verdade, o legislador português tem contemplado amplamente discriminações positivas com base em fatores pessoais, assim no que diz respeito ao acesso a cargos dirigentes de entidades administrativas (sexo), à composição de júris académicos (sexo, também) ou, por último, no que diz respeito à amnistia por ocasião da jornada da juventude (idade). Infelizmente, nenhum escrutínio tem sido feito sobre a matéria, sendo que o mesmo tarda, estranhando-se a este respeito a passividade dos órgãos de iniciativa de fiscalização da constitucionalidade junto do Tribunal Constitucional, entre os quais se destaca o Presidente da República.

De facto, seria importante que, no que diz respeito a todas estas soluções, cada uma delas a sujeitar a uma avaliação que se adivinha difícil, a jurisdição constitucional portuguesa fosse instada a decidir, desenvolvendo uma jurisprudência que fornecesse ao legislador critérios claros sobre o que é admissível e não admissível a este nível.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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