O poder da realidade e a decisão política

O que se desenha no horizonte sobre a mudança dos estatutos das ordens profissionais será mais um desastre e um tempo perdido.

When you are studying any matter, or considering any philosophy,
ask yourself only what are the facts and what is the truth that the facts bear out.
Bertrand Russell (1872-1970)

Que explicação para o desânimo dos portugueses (Expresso, 9/6/2023) com os valores impressionantes de avaliação negativa na Saúde, Educação, Justiça e na Política, evidenciando perplexidade e desconfiança para o futuro? Servirá de alerta para as consciências de quem governa e de quem assim se sente governado, ou, pelo contrário, é expressão do velho hábito nacional de lamento e crítica sem consequências?

Curiosamente, recebi no mesmo dia documento crítico sobre o serviço nacional de saúde inglês – NHS –, mas baseado em indicadores de actividade no contexto de iniciativa Quality Watch e produzido pelo Nuffield Trust and Health Foundation. Os resultados são decepcionantes: i) em Abril, 7,4 milhões de doentes em lista de espera para tratamentos não urgentes, aumento de meio milhão nos últimos cinco meses; ii) nos serviços de urgência (A&E, no original), 25% dos doentes aguardaram mais de 4h quando o objectivo fixado era de apenas 5%; iii) carência de leitos hospitalares e insuficiência de cuidados de emergência. Não um sentimento, mas a realidade e o poder dos factos, como apelava Lord Russell.

Em Portugal, o cenário não é melhor. Para além dos doentes sem médico de família, com acesso ao SNS diminuído, as urgências cuja pletora se agrava e onde se espera bem mais de 4h para atendimento médico, doentes em macas nos corredores, para não mencionar a sobrecarga tremenda sobre os médicos e outros profissionais expressa no número de horas extraordinárias contabilizadas. Entidades académicas (Nova SBE, Recursos Humanos, 2022), responsáveis médicos e da Ordem dos Médicos têm alertado para a situação calamitosa e deficiente provisão pública dos serviços médicos.

Há um ano colaborei numa publicação que, para além dum alerta, sugeria caminhos para intervenção. Continuo a acreditar que separar gestão executiva da responsabilidade política directa será o caminho certo, embora defendesse maior autonomia, orçamento plurianual, responsabilidade e capacitação institucional que potenciasse descentralização e proximidade nas decisões. E um compromisso parlamentar como garantia de continuidade, porque o lastro do tempo perdido torna o exercício ainda mais difícil e complexo. Mencionava, também, a necessidade urgente de uma cultura de avaliação e governação clínicas, sustentada em indicadores mensuráveis e capaz de identificar e premiar mérito e resultados.

Também na Educação a situação é tão ou mais penosa. Desrespeito pelos alunos e as suas legítimas expectativas de aprendizagem, indiferença pelo impacto negativo da permanente agitação laboral no ensino a curto e médio prazo. Os alunos na Educação, como os doentes na Medicina Clínica, devem ser o centro de gravidade destes grandes serviços públicos, sejam eles ministrados por instituições públicas, privadas ou sociais.

Qual a razão essencial para estes problemas? Causa estrutural nestes modelos organizativos dos grandes serviços públicos? Decisões políticas inadequadas e erráticas? Informação insuficiente? Como espectador comprometido recuso a indiferença e habitualidade e partilho do apelo à lucidez no discurso político, à necessidade de decisões baseadas em indicadores fiáveis que sustentem actuação coerente e continuada, para além da espuma do acessório e do impacto mediático. Sem reformas sérias e profundas, não haverá a mudança necessária. Serão previsíveis na realidade actual? O país merecia, porque há uma outra face da dura realidade que não podemos ignorar. Não como lenitivo ou consolo de alma, mas como inspiração e rota.

Todos os dias, nos hospitais públicos e privados, nas urgências, na actividade programada, médicos e os outros profissionais actuam com competência tratando doentes, prevenindo mortes e incapacidades, discretamente, sem alarde, como é próprio do espírito de serviço e do dever profissional. Como na Educação, onde nos sectores público, privado e social existem escolas, professores de grande qualidade, funcionários empenhados com dedicação e espírito de serviço e de missão ultrapassando dificuldades e limitações. Também guardam recato do seu trabalho, como é próprio de quem cumpre o seu dever.

Torga, figura tutelar da Medicina e da Cultura, definiu esta idiossincrasia nacional que nos tolhe: somos um país de indignados que não convertemos a indignação em ímpeto de mudança. Há que vencer o desânimo e transformá-lo em energia positiva e criadora.

No entanto, o que se desenha no horizonte sobre a mudança dos estatutos das ordens profissionais será mais um desastre e um tempo perdido. As ordens profissionais têm o dever de accountability, de prestar contas. É obrigação estatutária. Mas a sua independência em relação ao poder político é um requisito intocável, necessário à sua missão. Foi isso que no tempo passado, sem Liberdade, lhes permitiu agir, propor soluções e mostrar a rota como tão bem o fizeram a Ordem dos Médicos e dos Advogados. Esquecer a História, ignorar os factos em nome duma narrativa ideológica, é outro sinal que não serve a Verdade nem ilumina o caminho certo! A Política não pode ser apenas a arte do possível, ou a imposição da visão de uma qualquer maioria parlamentar circunstancial. Tem que respeitar os valores essenciais da Liberdade, da Responsabilidade e da Autonomia das Instituições que, com a Vontade esclarecida da Cidadania, são a força aglutinadora e de progresso na Sociedade aberta, livre e democrática.

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