Não há estagiários grátis

Esta medida, sem mais, contribuirá para entrega da profissão a uma lógica capitalista e ditará o fim de uma passagem de testemunho entre advogados que caracteriza, e enriquece, a profissão.

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Ana Catarina Mendes anunciou que os estágios nas ordens passam a ter de ser remunerados com o valor do salário mínimo nacional acrescido de 25%, o que corresponde atualmente a 950 euros.

É certo e sabido que em várias profissões existe a prática, e o costume, de não remunerar os estagiários ou de o fazer em termos insignificantes. O resultado desta situação é que jovens adultos, com formação superior, entram no mercado de trabalho sem com isso conquistar a sua independência ou um meio de subsistência. São verdadeiros adultos adiados.

O trabalho sem remuneração não é dignificante sobretudo quando quem presta trabalho precisa efetivamente de receber. Por outro lado, a possibilidade que as organizações têm de aceder a mão-de-obra especializada, sem pagar o devido preço por isso, interfere na justeza das restantes contratações e tem impacto na remuneração, ou seja, na vida, de todos os profissionais do sector. Os estágios não remunerados são um factor de degradação salarial para a classe profissional em causa.

Quem colhe benefícios deste trabalho não remunerado? As organizações que os contratam. Mas é preciso ter alguma atenção aqui. Vivemos num país pequeno e de pequenas organizações.

No caso dos advogados, calcula-se que cerca de 85% dos advogados inscritos na Ordem dos Advogados exerçam a profissão em prática individual. Isto significa que trabalham por conta própria e que não estão integrados em sociedades de advogados. Significa também — deve ser dito — que tendem a estar longe dos grandes clientes, dos grandes negócios e das grandes faturações. Um advogado em prática individual pode não conseguir pagar um estágio remunerado nos termos anunciados por Ana Catarina Mendes. A bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, chamou a atenção para isto.

Igual posição manifestou o bastonário da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução. Adiantou que a proposta foi pensada a pensar nas grandes sociedades de advogados de Lisboa ou Porto. Parece estar aqui implícita a defesa dos restantes advogados por conta própria, e que são a maioria, e do seu direito a ter estagiários não remunerados a ajudar nos escritórios.

Mas o tema aqui tem de ser o superior interesse de quem ingressa na profissão e não o de quem os deverá remunerar. Desta vez não pode ser sobre a velha tensão entre o que beneficia os advogados em prática individual e o que beneficia as sociedades de advogados. Valores mais altos se levantam. Tem de se perceber o que é melhor para os estagiários e para a própria profissão.

Fixar um valor mínimo de remuneração é sempre um bom princípio. Até porque, se é necessário fixar um valor mínimo, isto significa que o próprio mercado não garante que os estagiários recebam esse valor. Assegurar isto encaixa na perfeição no que deve ser a missão do Governo e do Estado.

Acontece que não se fazem omeletas sem ovos. Impor esta regra não vai solucionar a vida dos estagiários. A magia não vai acontecer. Fazer o estágio é condição de acesso à profissão: passarão a existir muitas centenas de licenciados impedidos de o fazer. Teremos aqui um novo problema e não contem que seja o mercado a resolvê-lo. Grande parte dos advogados em prática individual deixará de poder assegurar estágios. Na prática, os estagiários terão lugar apenas nas sociedades de advogados. Não haverá lugar para todos e os que conseguirem lugar aprenderão apenas uma versão da advocacia. Nessa versão, serão elementos altamente proletarizados. O que digo é que esta medida, sem mais, contribuirá para a entrega da profissão a uma lógica capitalista e ditará o fim de uma passagem de testemunho entre advogados que caracteriza, e enriquece, a profissão.

Claro que isto poderia ser evitado com a criação de apoios públicos para estas remunerações ou assumindo o Estado, de alguma forma, responsabilidade por elas. Mas essa parte não fez parte e não foi anunciada. O Governo quer interferir na advocacia, mas então deve ser consequente. Não deverão existir estagiários grátis. Muito bem. Ninguém deve discordar disto. Mas também não há políticas grátis.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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