“Há um buraco negro na utilização de recursos hídricos em Portugal”

A protecção dos solos e o aumento da capacidade de retermos água são medidas imprescindíveis para enfrentar as alterações climáticas, diz geógrafa, no Dia Mundial de Combate à Desertificação e à Seca.

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Maria José Roxo trabalha na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
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Geógrafa há mais de quatro décadas, Maria José Roxo é professora catedrática na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e especializou-se no estudo da desertificação dos solos. Conhecedora profunda da região do Baixo Alentejo, graças ao trabalho que faz desde 1988 no Centro Experimental de Erosão de Solos de Vale Formoso, a investigadora é testemunha da continuada degradação dos solos do país e especialmente daquela região, onde a agricultura intensiva tem acelerado o problema. “O solo está na base de tudo aquilo que são as necessidades humanas”, alerta. Sem ele, a água não é retida, a biodiversidade reduz-se, a produção agrícola piora e a luta contra as alterações climáticas fica dificultada. Mas há muito a fazer, e a primeira coisa é “reduzir consumos”.

Hoje, o uso dos solos é completamente diferente de há 200 anos. Há barragens, agricultura intensiva, centrais solares. Como é que isso altera a relação com a paisagem?
A paisagem é um reflexo do que são as exigências dos mercados ou das populações. Isso implica uma transformação e utilização diferente dos recursos naturais. Com a evolução da agricultura, agora de precisão e muito informatizada, uma parte dos agricultores distanciou-se do que eram os métodos mais amigáveis de trabalhar a terra. Por outro lado, temos dois problemas: o que pensam as pessoas nas cidades e o que pensam as pessoas no mundo rural. Na realidade estão dependentes, só que houve um distanciamento das pessoas que estão no meio urbano daquilo que é natureza ou daquilo que é a produtividade natural dos campos.

Porquê?
Porque é fácil comprar tudo aquilo de que as pessoas necessitam. Por isso é que se fala que temos de nos ligar mais à natureza e perceber os mecanismos naturais. As pessoas nas cidades visitam parques naturais, fazem turismo rural, mas não é uma conotação com o que são os recursos naturais e o que a terra dá.

No campo, diria que temos aquelas pessoas que fazem a sua agricultura de subsistência, têm as suas hortas que produzem e têm essa conexão com a terra. Sabem ler o comportamento das formigas ou perceber como vai estar o tempo. Sabem quando hão-de plantar. Depois temos tudo aquilo que é a agricultura mais industrial, que não se preocupa tanto com os impactos da utilização dos recursos naturais e por isso ficamos com os recursos degradados, mas que têm o objectivo de produtividade.

Que impacto têm essas visões diferentes na resposta à desertificação? Hoje, por exemplo, parte do sector agrícola europeu está contra a Lei de Restauro da Natureza, enquanto muitos cientistas e pessoas das áreas urbanas estão a favor…
É verdade. A maioria das pessoas continua a pensar que desertificação é despovoamento. Continua a dizer desertificação dos solos, desertificação física, desertificação humana. Não, temos uma palavra única que é desertificação. Isto é eu ter uma área que tinha solos produtivos mas, pelas más práticas que foram colocadas nesse solo para produzir, gastei-o, destruí, não tenho nem solo, nem biodiversidade, nem água, desertificou-se. Havia um professor espanhol, meu orientador de tese, Francisco Lopez-Bermudez, que dizia: "Quando morre um solo, nascem as pedras." Tenho áreas do Alentejo que tinham solos bons, eram de barro, vermelhos, e agora só vejo manchas brancas: já é rocha. O solo já desapareceu.

Começámos a invadir o território com as culturas intensivas e superintensivas. Isso é importante do ponto de vista económico. O que não pode acontecer é haver extensões e extensões do mesmo tipo de cultura ou do mesmo processo de trabalhar os solos, porque estou a gastá-los, a contaminá-los com agro-químicos, a gastar a água e a diminuir drasticamente a biodiversidade. Estou a gastar reservas de água subterrânea e superficiais desde o Algarve a Trás-os-Montes.

Por outro lado, as pessoas estavam habituadas a ver o país com vastas áreas de mato. Falava-se da cessação da actividade agrícola. Mas as áreas em que a vegetação natural está a reaparecer têm uma função brutal que são serviços de ecossistema de que não falávamos porque dávamos por adquiridos: a água ou o sequestro de carbono. Há que ter uma nova visão. Eu não quero um território só com culturas intensivas, mas um mosaico para termos biodiversidade, produtividade.

Um cavalo de batalha na área do Baixo Alentejo é demonstrar a um agricultor que não tem de andar sempre a cortar o mato da sua propriedade. Porque quando corta o mato está a favorecer que a água da chuva fragmente e transporte o solo para os cursos de água. Não está a favorecer a existência de plantas aromáticas para o mel. Está a perder biodiversidade. Mas eles adoram limpar o mato, porque um bom agricultor tem as suas terras cuidadas e limpas.

É quase uma ideia estética.
Completamente. Mas agora a mensagem é que o mato é produtivo, sequestra carbono e permite que a água da chuva se infiltre, vá para os aquíferos. As pessoas têm de perceber que a natureza trabalha como um sistema. Se estou sempre a tirar peças do sistema, ele não funciona bem. Preciso de fazer uma agricultura e intervenção neste território que permitam que, se estou a explorar intensivamente, então tenho de ter outra área onde não estou a explorar para haver um equilíbrio. Isto chama-se ordenamento do território, planeamento e visão estratégica.

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Maria José Roxo

Passámos anos a dizer que a política de cereais do Estado Novo foi uma catástrofe, erodiu os solos do Alentejo. Aquilo a que estamos a assistir agora é a uma invasão do território por monoculturas que estão a degradar os solos. Além de estarmos a intervir mal, estamos a ter as consequências de algo que ainda não tínhamos experimentado com tanta intensidade: as mudanças climáticas.

Como mudar esta tendência?
Há duas coisas cruciais. Uma teve a ver com as políticas europeias. A primeira directiva comunitária que devia ter saído era a directiva solos. Aí fazia todo o sentido depois ter uma directiva água, biodiversidade. O solo era a base para as pessoas perceberem a importância das outras directivas.

Porquê?
O solo está na base de tudo aquilo que são as necessidades humanas. Posso ter água, mas se não tiver solo a coisa complica-se seriamente. Só que bebemos água e é uma coisa muito mais imediata. Não comemos solo. Mas os solos têm imensas funções.

A directiva solos talvez fosse mais difícil de executar.
É mais difícil porque o solo é qualquer coisa territorial, tem fronteiras, tem limites. Se tenho solos muito bons, teoricamente não podem ser desafectados para construir um empreendimento turístico. Mas isso acontece. Há aqui um negócio económico muito grande.

Depois, na Europa, temos solos contaminados. Vamos cartografar os solos contaminados? As pessoas querem viver sabendo que estão sobre solos contaminados? Era um assunto complexo, por isso é que demorou tanto tempo e só vai sair agora a directiva solos.

E qual é a outra questão?
A formação. Os agricultores tinham uma peça fundamental que deixou de existir que eram os regentes agrícolas, que andavam no campo e aconselhavam. Deixámos de ter esse papel. Eu falava com agricultores e perguntava. "Porque é que no seu projecto pôs pinheiros no Baixo Alentejo? Porque é que não escolheu azinheiras? 'Porque o projectista disse-me que era melhor ter pinheiros'." Se ele fosse aconselhado por um regente agrícola, dizia-lhe que é melhor pôr azinheiras.

Depois, há agricultores altamente tecnológicos e aqueles que não o são e que um solo para eles é sempre bom. Se eu disser "este solo já não é quase nada", dizem que "não, o meu solo é muito bom, o do vizinho é que não". É sempre bom porque a produtividade depende da quantidade de adubo que se põe. Eles precisam de ter mais acompanhamento.

Depois, se quero conectar as pessoas com a natureza tenho de começar muito cedo: logo na primária, no jardim-de-infância, onde tenho de falar sobre todos os recursos. O recurso solo estava completamente ausente. Este ano, quando comecei a dar aulas, falava em solo e os meus alunos diziam: "Mas isso é terra." Não é terra. Terra é um nome global. Solo é uma coisa muito particular: tem ar, água, partículas mais grosseiras, mais finas, matéria orgânica que cola as partículas todas de argila, de areia, que é quase um íman, que cria espaços vazios para a água se infiltrar. Se não tiver matéria orgânica, tenho um solo sem capacidade de esponja.

Os miúdos têm de perceber que se eu destruir um solo, o que posso fazer em horas, preciso de 100 anos para ter um centímetro e preciso de milhares de anos para ter um solo desenvolvido. É um recurso natural vital.

Terceiro ponto: adorava que os decisores políticos fossem para o campo.

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Maria José Roxo mostra desenhos feitos por alunos sobre o tema da desertificação

Porquê?
Para verem o campo. Tínhamos a política de reflorestação para reconversão de terrenos agrícolas em áreas periféricas. Perfeito. Mas o que aconteceu? Florestaram com pinheiro-manso. Áreas do Baixo Alentejo na redondeza de Mértola cheias de pinheiro-manso. São bonsais, não dão pinha, não dão nada. É uma boa política implementada de uma forma errada, foi um descalabro. Os senhores que decidiram e aprovaram os projectos vão ao campo ver.

Outro exemplo. Para minimizar os impactos das secas em 2003, 2005, deram dinheiro para fazerem charcas. As charcas em alguns casos são buracos da dimensão desta mesa, onde tiraram a terra, mas deixaram ali a terra toda. As chuvadas seguintes meteram a terra dentro do buraco. Eu defendo charcas, mas vamos estabelecer uma dimensão mínima das charcas, e que uma charca só pode ser construída quando duas linhas de água alimentarem as charcas. Essas linhas de água têm de estar renaturalizadas para trazer boa água e não trazer muita terra para dentro. Eu gostava que eles viessem ao campo.

É preciso ter uma ideia real do território.
Isso mesmo. É chegar à Nossa Senhora de Guadalupe, em Serpa, que é um ponto alto, lindíssimo, e olhar para o horizonte. Depois pensar quantos litros de água consome cada uma daquelas arvorezinhas ou daqueles arbustos [que fazem parte de culturas intensivas]. São milhões. Depois pensar: onde está esta água? Como é que vai ser o próximo Outono? Muita gente tem poços e furos. Eu tenho um furo em Vale Formoso, mas não tenho um contador. Não há contabilização. Há muitos furos ilegais. Há um buraco negro na utilização dos recursos hídricos em Portugal, sobretudo na parte subterrânea. Não temos esse conhecimento. Há uma relação directa entre aquilo que se faz no território e aquilo que podemos efectivamente fazer. Esse desequilíbrio é cada vez maior.

Hoje, a desertificação é maior do que era há dez ou 20 anos?
Sim. Aumentou porque o índice de aridez aumentou. Temos mais anos secos e temperaturas muito mais elevadas. A aridez é uma relação entre o que chove e o que se evapora, e consequentemente tem sido catastrófico. O índice de aridez está a aumentar para Norte. Depois há a pressão das culturas que estou a colocar sobre o território – não é só a cultura intensiva, são as estufas no litoral alentejano. Em muitas áreas do Baixo Alentejo está-se a criar gado bovino, onde aquelas áreas alimentam mal ovelhas e cabras.

Por isso, tenho o território com susceptibilidade cada vez maior à desertificação, a que associo os incêndios. Isso é mais de 70% do território. Se for analisar só o Baixo Alentejo, a susceptibilidade à desertificação é de cerca de 90%.

Isso significa o quê?
Que tenho todas as condições para que os solos fiquem altamente degradados. É preciso tomar medidas de conservação do solo, aumentar a matéria orgânica, fazer uma agricultura regenerativa, deixar na minha propriedade áreas com mato para serviços de ecossistema. Eu preferia que se pagasse aos agricultores serviços de ecossistema do que subsídio à cabeça para criação de gado. Essa necessidade de melhorar as práticas é fundamental para diminuir a susceptibilidade à desertificação. Porque há uma coisa em que não posso mexer, que é a questão climática.

Vivemos um 2022 muito seco. Depois, tivemos três meses em que ocorreram dilúvios. De seguida, voltou a ausência de chuva. O que nos espera?
Espera-nos uma enorme incerteza. Não consigo dizer muito bem o que é que vai acontecer no próximo Outono. Tivemos uma seca verdadeiramente severa, chegámos a limites muito baixos das albufeiras, depois tivemos aqueles dilúvios em Dezembro e Janeiro. Foi uma tristeza ver que essa água toda caiu e não houve nenhuma capacidade de armazenamento. Tínhamos tido uma oportunidade única de limpar as albufeiras, desassorear, tirar os materiais, para ganharmos capacidade de armazenamento. Mas isso não aconteceu.

Os actores políticos têm dois comportamentos em relação a estes fenómenos, uma é reacção e a outra é a paz de consciência, que é criar um grupo de trabalho ou um observatório. Mas nunca conseguimos saber muito bem quais foram as conclusões dos grupos de trabalho ou ver algo a acontecer no terreno. Isso é o mais frustrante. A burocracia é muito pesada.

Depois deixou de chover e começámos a ter temperaturas muito elevadas. A água armazenada no solo e as plantas começaram a secar rapidamente e Abril foi catastrófico, com a onda de calor. Não é só uma questão de não termos água, o que está a ser muito perturbante é esta oscilação de temperaturas: muito elevadas, depois baixam. Essa é uma realidade de que temos de ter consciência. O clima está verdadeiramente a mudar.

O que se pode fazer?
Vamos ter de ter culturas mais adaptadas a estes ritmos. Quando Novembro é o mês mais irregular em termos de precipitação, então tenho de pensar se será o melhor mês para plantar ou que culturas se vão plantar. Se a Primavera tem cada vez menos chuva, então tenho de pensar em culturas que não precisem de tanta água na Primavera. Ou então tenho de pensar em sistemas de irrigação mais eficazes e eficientes.

Esse pensamento tem de ser local?
Tem. As características geográficas, físicas, de um território são muito importantes. Quando digo que tenho um elevado grau de erosão de solos no Baixo Alentejo, não posso utilizar aqueles dados para todo o país. Aqueles solos são específicos, têm características específicas. O pensar território é pensar que uma prática que pode ser boa no Baixo Alentejo pode ser um desastre na Beira e óptima em Trás-os-Montes.

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Maria José Roxo

Conhecemos o suficiente para ter esse tipo de respostas locais?
Acho que sim, mas cada um está na sua casinha. Por isso é que a geografia tem esta capacidade de juntar os elementos. Juntar as características do relevo, do solo, o clima, e pensar. Se tenho uma superfície plana e muito bons solos, posso fazer irrigação se tiver água, mas esta irrigação tem de ser pensada e eficiente. Se tenho solos pobres, posso ter pastoreio extensivo, mas também não vou fazer totalmente pastoreio extensivo, vou ter matos, porque são importantes para ter águas subterrâneas. Mas não sei nada de plantas, então preciso de alguém que diga que espécies são importantes e sequestraram mais carbono. Preciso de equipas multidisciplinares a pensar o território.

Essas equipas existem?
Não. Existem trabalhos. Mas acho que o futuro tem de passar por aí. Até pode ser com as entidades locais. Mas tem de haver essas equipas com diferentes conhecimentos: os agrónomos, os geólogos, os biólogos.

Nestes dias a China foi notícia por causa de ideias e medidas contra a escassez de água, como o desvio de rios e pedir às pessoas para tomarem quatro banhos por mês. Como observa isto?
Não gosto de ser muito catastrofista. Acho que a palavra mais importante no futuro é reduzir. As pessoas vão ter de reduzir consumos: um deles é a água. Nas cidades não temos tanta consciência da questão do problema da água. Só se vai ter quando ela não correr na torneira. Quando houver uma norma que diga que só há água das duas às três horas, ou dois dias por semana. Isso é catastrófico se pensarmos naquilo que tem sido o grande motor da economia em Portugal, o turismo.

Mas há tanto a fazer em termos de boas práticas para aproveitar a água quando chove. Tornar as cidades produtoras de água: ter bacias de recepção, que podem funcionar como lagos, mas que posso usar essa água quando preciso dela; ter praças que têm depósitos subterrâneos e toda a água que cai está a ser armazenada no interior. Ter áreas verdes, como a Praça de Espanha.

O mundo rural tem de ter noção que uma melhor utilização do território pode favorecer a existência desses recursos naturais. Vi e fotografei faixas de gestão de combustível por causa dos incêndios no concelho de Vouzela em que a delimitação da faixa de gestão de combustível foi à volta de uma barragem. Quando chove, o solo vai todo para dentro da barragem. Este tipo de coisas não pode acontecer.

Acho que temos um caminho imenso de coisas a fazer. Depois, é crucial reduzir consumos: a água, a degradação de solos, os plásticos, o desperdício alimentar.

O que acha do sistema de tubagens em Lisboa em resposta às cheias?
É um paliativo. É melhor do que nada. Mas a cidade devia ser pensada como um sistema, ver onde há verdadeiramente problemas. Até podemos ter uma boa surpresa, pode ser que resulte, mas há muito mais situações em que era importante actuar. Repensar as funções que estão nas áreas baixas, que tipo de pessoas vivem nessas áreas, que cuidados precisam de ter.

E em relação à Convenção de Albufeira, é preciso mudar algo?
Acho que é melhor não se mexer na Convenção de Albufeira. Estamos na Península Ibérica. Quando há seca em Portugal, há seca em Espanha, muitas vezes muito mais grave em Espanha, em função da dimensão do território espanhol e por Portugal estar mais junto ao oceano. Os espanhóis precisam de muita água no Sul, onde têm maior possibilidade de fazer agricultura. Aquilo que é importante é termos a certeza de que cumprem os mínimos, os caudais ecológicos.

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