Os filhos nunca deviam sentir-se estranhos na casa onde cresceram

Esta carta é uma ordem. Ou seja, uma birra a sério.

Foto
@designer.sandraf
Ouça este artigo
--:--
--:--

Filha,

Esta carta é uma ordem. Ou seja, uma birra a sério.

Ordeno que a partir de hoje cada um dos meus filhos venha dormir uma ou duas noites por mês a minha casa, exigência extensível aos netos. O objetivo não é fazer-me companhia — que, no entanto, é sempre muito bem-vinda —, mas impedir que percam o hábito de ficarem em casa dos pais/avós como se estivessem realmente em casa. Com o conforto e o à-vontade que só o hábito traz consigo.

Digo isto porque nos últimos anos de vida da avó Granny, da minha mãe, portanto, quando era preciso lá ficar, estranhava, arranjava todas as desculpas para não passar a noite. E era a casa onde vivi até aos 21 anos, idade com que casei. A casa a que conhecia todos os cantos, a que foi nossa até à morte da avó, a casa que ainda hoje me aparece em sonhos, mas, apesar de tudo, estranhava a cama, os barulhos da rua, não conseguia dormir bem. Não a sentia já como verdadeiramente minha e embora não fizesse cerimónia, na realidade andava um bocadinho em bicos de pés, sem querer atrapalhar.

Não quero que vos aconteça o mesmo. Não quero que percam essa ligação, nem que sintam os vossos antigos quartos como um espaço que já não vos pertence, de onde levaram todas as vossas coisas. É uma espécie de seguro interesseiro para o futuro? Talvez.

Mas isso agora pouco interessa. O que importa é saber quando vens?


Querida Mãe,

Tem toda a razão. Não há nada melhor do que continuarmos a sentir-nos em casa, na casa onde crescemos.

Mas tem a certeza que não prefere, antes, que passemos a fazer um bocadinho de cerimónia? Pense bem, é que não posso garantir que voltando ao mesmo sítio onde fui adolescente não tenha uma reação pavloviana e comece a esquecer-me de novo da toalha no chão! Ou que não posso esvaziar o frigorífico, que se encheu graças ao seu orçamento e não ao meu. Que se deixar os pratos no lava-loiças, vai ser a mãe a ter de os pôr na máquina, e eu sendo A mãe todos os dias, já sei o esforço que isso representa.

É que juro que já sinto essa ambiguidade quando aí estou, e estou muitas vezes, quanto mais se me instalar um dia, dois dias, três dias...

Mas se apesar dos meus avisos e alertas, insistir, vou com todo o gosto.

Pode ser já amanhã?

Bjs


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários