Rui Zink e o lugar da fala: “Quem tem direito a falar sobre determinado assunto?”

Um debate animado sobre o que realmente interessa para a arte e para a cultura. A qualidade? A origem de quem cria? A sua condição e orientação sexual? Seguem-se algumas respostas.

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A última conversa nocturna do Livros a Oeste fez-se com Rui Zink, Manuella Bezerra de Melo e Manuel Alberto Valente, moderados por João Morales ©Rafael Malvar/Município da Lourinhã
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Na última das conversas nocturnas do Festival Literário da Lourinhã (que decorreu de 9 a 13 de Maio), o mote era a liberdade, traduzido no verso de Mário Cesariny “Do cadáver de um homem que morre livre”. Falou-se de racismo, de oportunidades, de se dar voz aos outros ou de ela se apropriar. Mas a qualidade na arte e na cultura independentemente de quem a cria foi o que mais agitou o debate.

No painel, Rui Zink (escritor e professor), Manuella Bezerra de Melo (escritora brasileira e investigadora da Universidade do Minho) e Manuel Alberto Valente (editor e poeta), moderados pelo programador do Livros a Oeste, João Morales.

O ponto de partida para a conversa foram os livros de poesia e prosa escritos por autores imigrados em Portugal Volta para Tua Terra: uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal, organizados por Manuella Bezerra de Melo e Wladimir Vaz, da editora Urutau.

Quando descreveu “as temáticas dos livros”, a pedido do jornalista João Morales, a convidada referiu as questões de “indígenas, trans, negros, homossexuais”. Foi então que Manuel Alberto Valente quis intervir e falar de “rótulos”: “A pior forma de racismo é quando o chamado politicamente correcto nos começa a obrigar a pôr rótulos nas pessoas.”

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Manuel Alberto Valente: “A pior forma de racismo é quando o chamado politicamente correcto nos começa a obrigar a pôr rótulos nas pessoas” ©Rafael Malvar/Município da Lourinhã

Falou de um caso, sem o identificar, em que certas pessoas “achavam que um determinado editor deveria colocar na badana do livro que uma determinada autora era transgénero”. Para ele, isso é a mesma coisa “que obrigar a pôr num livro que um autor é preto, é homossexual ou que uma autora é lésbica. Isso para a arte e para a cultura não tem o mínimo interesse. A única coisa que pode contar é a qualidade”.

E o director editorial da Porto Editora recordou algo que o “chocou profundamente” quando Graça Fonseca foi eleita ministra da Cultura: “Alguém escreveu no Facebook esta coisa abominável: ‘Finalmente, temos uma ministra da Cultura lésbica.’ Eu não quero uma ministra da Cultura lésbica, não quero um ministro da Cultura homossexual, não quero um ministro da Cultura branco, não quero um ministro da Cultura preto. Posso querer todos, mas sobretudo quero que o ministro da Cultura seja competente. A sua orientação sexual, a sua cor, a sua raça, não é nada comigo. É uma questão da própria pessoa.”

E alertou: “Nós temos de ter muito cuidado com alguma tendência que começa a mexer-se no Brasil, que é muito mais aguda do que em Portugal, que é começar a valorizar determinadas coisas não pelo valor que elas têm, mas por virem de onde vêm. E isso pode destruir o princípio básico de toda a arte e de toda a cultura, que é qualidade.”

Manuella Bezerra de Melo disse concordar com Manuel Alberto Valente e explicou: “Fizemos a curadoria dos textos somente pelos nomes, nem sabíamos quem eram as pessoas. Quando me perguntaram sobre as abordagens temáticas, eu falei sim que há autores indígenas, que falaram sobre as suas questões, autores trans, que falaram sobre as suas questões e isso aconteceu por acaso. Não foi uma medida curatorial. Aconteceu porque os seus textos eram considerados de qualidade.”

Prosseguindo na sua argumentação, a escritora disse que essas pessoas, “indígenas, transexuais ou negros, trazem uma abordagem sobre esses temas que para eles e para toda a sociedade nos é muito cara”. A ideia não era “cumprir uma quota” e lembrou que “muitas dessas pessoas não foram publicadas, nem se lhes permitiu que falassem sobre as suas questões ou que produzissem arte, tudo por conta das suas condições sociais, subalternizadas”. E deu o exemplo das mulheres, “que durante muito tempo foram proibidas de aprender a escrever”. Rui Zink aproveitou para brincar e amenizar o ambiente: “Saudades desse tempo…” Arrancando uma gargalhada da plateia.

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Manuella Bezerra de Melo: “Indígenas, transexuais ou negros trazem uma abordagem sobre esses temas que para eles e para toda a sociedade nos é muito cara” ©Rafael Malvar/Município da Lourinhã

Para terminar a sua “defesa”, Manuella Bezerra de Melo referiu que, depois de essas pessoas serem seleccionadas para o livro, “é importante que as suas condições sejam valorizadas, porque ainda é uma presença muito risível [irrisória], mas não devem ser olhadas como um requisito”.

E veio Rui Zink, depois de uma intervenção sobre a pouca presença do surrealismo nos programas das escolas, “pôr os meninos na ordem”, dizendo: “Como tenho cabeça de ficcionista, tenho olhos de mosca e, portanto, estou sempre a tentar ver todos os pontos de vista. Há uns tempos estava a pensar no lugar da fala. E o lugar da fala é: quem é que tem direito a falar de determinado assunto? E fiquei como a bola de ténis do Manuel Alberto Valente [que tinha invocado o filme de Woody Allen Match Point]. Fiquei em cima da rede.”

Ironizando: “Por um lado, é ridículo. É uma pena o Flaubert não poder ter escrito a Madame Bovary e nós não podermos ler a Madame Bovary.” E lembrou: “Durante muito tempo, as mulheres para poderem escrever tinham de fingir que eram homens, como a George Sand [pseudónimo da francesa Amantine Lucile Aurore Dupin]. Ainda hoje, a J.K. Rowling [escritora da série Harry Potter] assina J.K.” Foi avisando: “Quando vocês vêem autores ingleses a assinar com iniciais, é se calhar uma mulher.”

Disse ser verdade tudo o que ali foi dito pelos outros convidados, mas afirmou: “É muito engraçado falar em mérito quando uma pessoa parte com avanço. Por outro lado, eu não quero ser apenas representante do homem branco, velho, porque não tenho culpa de ser isto.”

E contou como no ano passado nos Estados Unidos dois alunos não falaram com ele durante quatro semanas porque ele era um esclavagista. “Eu podia ter-lhes dito que além de esclavagista sou também um bom garfo, também gosto de algumas séries de Netflix. Ou seja, não me podem reduzir àquilo. E às vezes há exageros. Há exageros muitas vezes para compensar o exagero que foi o contrário. Aquilo que é normal é aquilo em que a pessoa não repara.”

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Rui Zink: “Eu não quero ser apenas representante do homem branco, velho, porque não tenho culpa de ser isto” ©Rafael Malvar/Município da Lourinhã

Para esclarecer melhor a ideia, falou de trotinetes, para dizer que as pessoas que estão indignadas e incomodadas com as trotinetes, “não deixam passar as pessoas, as velhinhas, os cegos”, são as mesmas que “deixam o carro estacionado em cima do passeio”. Pergunta: “Qual é a diferença entre a trotinete e o carro, além de o carro ocupar mais espaço e chatear mais o passeio? É que ao carro estamos habituados.”

Outro exemplo: “A Joacine [Katar Moreira] e o André Ventura. Entre os dois, não tenho dúvidas, sou mais pró-Joacine, mas quem causou estranheza na sociedade portuguesa foi ela, a Joacine.”

Mais um: “Neste momento, Mamadou Ba está a ser acusado de ter chamado assassino a um homem [Mário Machado] — que eu pensava que era uma honra para ele ser chamado assassino — que é um neonazi que fez várias vezes a saudação nazi, está filmado. Não matou porque foi incompetente. O que acontece aqui é que há muitos cidadãos portugueses que acham que a anomalia… é o Mamadou Ba.”

Afirmando não querer convencer ninguém, pergunta: “De que lado é que você está? De quem é que você tinha mais medo se visse numa viela escura? Eu era do Mário Machado, mas você se calhar era do Mamadou Ba.”

“Eu posso falar por ela”

Tentou arranjar uma imagem simples para ilustrar o lugar da fala: “Muitas vezes, nos anos [19]60/70, os casais iam passear de braço dado, também fui algumas com os meus pais. Era o passeio higiénico. De repente, a televisão chegava e alguém dizia: ‘Olhe, minha senhora, isto é para um programa, ‘qual detergente é que você gosta mais? Você lava à mão ou lava com máquina?’ E muitas vezes a mulher ficava corada e o marido avançava: ‘Ela é muito tímida, mas eu posso falar por ela’.”

Faz depois uma analogia: “Eu acho que o Mia Couto fala muito bem pelos pretos. Acho que ele deu voz aos pobres, aos descamisados, até àqueles que andam de machimbombo. Coisa que eu duvido de que alguma vez tenha feito. Ele era filho de médico, português, branco. É loiro, tem olhos verdes. Mas é um grande escritor e, portanto, era ridículo agora proibirmos os livros do Mia só porque ele é branco, filho de brancos da classe dominante.”

Disse admirar muito Mia Couto: “Quer como pessoa quer como escritor, é um indivíduo corajoso, é um indivíduo que dá voz aos outros, empresta a voz a quem não tem voz, que é uma coisa linda de fazer para um escritor. Agora, se só se ler Mia, é como a pergunta do detergente. Não é preciso haver escritores negros, que eu falo muito bem por eles. E aí começa a ser chato se por exemplo num país 99% das pessoas são um bocadinho mais bronzeadas.”

A seguir provocou mais uma gargalhada na plateia, ao referir-se a um projector potente que iluminava o palco: “Aliás, eu gosto muito desta luz porque daqui a pouco posso ser escritor moçambicano.”

Paulina Chiziane pode dizer outras coisas e com mais força do que Mia Couto

Pediu que se imaginasse o que seria “Mia Couto impedir que houvesse uma Paulina Chiziane [prémio Camões em 2021]. E a Paulina Chiziane trouxe uma coisa à voz da mulher africana que o Mia não pôde trazer. Como é homem, sempre que fala de mulheres africanas e de povos, faz poesia. Até para não parecer mal. Enquanto uma escritora como a Pauline Chiziane pode de facto dizer outras coisas, com muito mais força.”

Daqui, derivou para Agustina Bessa-Luís e pediu que a comparássemos com qualquer português “a escrever tão agrestemente sobre mulheres” como ela o fez. “Sem a Agustina, nós não teríamos personagens femininas más. No sentido de duras, sacanas e misantropas como a Sibila. Teríamos o quê? O Urbano Tavares Rodrigues a dizer: ‘Mulher, tu és a força da terra.’ Ou teríamos cantores franceses a dizer: ‘La femme c’est l’avenir de l’ homme’ [A mulher é o futuro do homem, Jean Ferrat].”

Frases que ficam muito bem, afirmou, para depois ironizar: “Eu acho que a Manuella Bezerra de Melo e as outras mulheres que estão aqui se deviam calar porque eu posso dizer coisas maravilhosas em vosso lugar.” Dirigindo-se numa pequena encenação à convidada do debate: “Posso dizer: ‘Vocês são muito melhores do que nós, homens. Vocês são incríveis, quem me dera ser mulher’.”

Para concluir: “O que acontece aqui é isto: o lugar da fala não pode dar cabo da imaginação e do meu direito a falar em nome de uma trans ou em nome de uma mulher. Mas há coisas para as quais se exige um esforço de imaginação, havendo noutras qualquer coisa de mais autêntico. Ou seja, o lugar da fala levado ao absurdo é estúpido, mas a ausência total do lugar da fala é igualmente estúpido. Ou até mais.”

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O mote do debate na noite de sexta-feira foi dado por Cesariny “Do cadáver de um homem que morre livre” ©Rafael Malvar/Município da Lourinhã

Se houve vencedor neste debate, foi o estímulo à reflexão sobre a qualidade na cultura e na arte e sobre a liberdade de se poder escutar todas as vozes, de todas as geografias e de todas as condições.

O PÚBLICO esteve na Lourinhã a convite do festival

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