O timing do Papa

Após mais de um ano de guerra na Ucrânia, a Santa Sé reconstrói-se como ator diplomático, alicerçado na ideia de neutralidade, com ritmo próprio, pouco dependente de pressões internas ou externas.

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No seu périplo diplomático, em busca da consolidação de alianças e apoio militar de alguns países europeus, o presidente da Ucrânia visitou Itália, no último 13 de Maio, onde se reuniu com o presidente da República, Sergio Mattarella, e a primeira-ministra, Georgia Meloni. Durante a tarde, Zelensky deslocou-se ao Vaticano para ser recebido pelo Papa Francisco. Cumpria-se, no 15.º mês da guerra travada na Ucrânia, um encontro que elevou expectativas sobre a atuação do Vaticano perante aquele conflito militar. Contudo, as imagens captadas do encontro entre os dois chefes de Estado e as sínteses da reunião de 40 minutos, emitidas por ambas as partes, revelaram contenção.

Por comparação com os encontros que manteve com os líderes políticos italianos, Zelensky adoptou uma postura mais formal e menos sorridente na Santa Sé. Por seu turno, o pontífice revelou-se também um anfitrião de semblante reservado. Mais calorosas pareceram ser as conversas do presidente ucraniano com o secretário vaticano das Relações com Estados e Organismos Internacionais, o bispo Paul Richard Gallagher. Alguma estranheza causaram, um pouco mais tarde, as declarações de Zelensky à televisão italiana RAI, quando afirmou: “Com todo o respeito por Sua Santidade, não precisamos de mediadores, precisamos de uma paz justa”. Memorizam estas palavras o esforço diplomático despendido pela Santa Sé para o encontro de soluções de paz na Ucrânia?

Em rigor, não. Manifestam, sobretudo, a forma de Zelensky de fazer política, na qual já se reconhece um padrão que é o de pressionar aliados, e potenciais aliados, a dar mais e a assumirem um discurso inequivocamente pró-Ucrânia, reservando um discurso de agradecimento e satisfação apenas para apoios impactantes. Nesta posição, a posição de neutralidade face aos dois lados da guerra, Rússia e Ucrânia, que com insistência Francisco tem manifestado, não agrada ao presidente ucraniano e o relacionamento entre ambos tem sido reconhecidamente tenso. Mas já o foi mais e tanto em Kiev como na Santa Sé cultiva-se uma aproximação entre os dois líderes (de que a audiência de sábado é o expoente público máximo), ainda que ao ritmo vaticano, primando pelo sigilo, pela discrição e, sempre, orientado para a equidistância.

Assim se compreende que a Santa Sé tenha assinalado aos media russos que esta visita a Francisco não esteve relacionada com qualquer negociação, mas apenas com a satisfação de um pedido de audiência “feito só há uns dias” (El País, 13/5/2023), como que diluindo o seu significado no contexto de uma outra visita de Estado (a Itália).

À margem dos holofotes mediáticos, o trabalho de diálogo e cooperação da Santa Sé para uma solução de paz, iniciado há pelo menos oito meses, tem envolvido não só agentes políticos e diplomáticos mas também religiosos. Os esforços do Vaticano têm exigido trabalho conjunto com a Igreja Ortodoxa Russa – com quem Francisco mantém relações florescentes (Foreign Affairs, 5/9/2019), depois da normalização alcançada com os papas João Paulo II e Bento XVI –, e contribuído para evitar a eclosão de uma guerra religiosa, dentro de um feroz conflito militar.

Nesta trajetória, inscrevem-se as reuniões do Papa, em abril, com o arcebispo metropolitano ortodoxo russo, Hilarion (conhecido pela sua oposição à guerra), com quem tem um excelente relacionamento, ou com o presidente das relações externas da Igreja Ortodoxa Russa, o metropolita Antónji, através do qual está em contacto com o patriarca Kirill (The National Catolhic Register, 4/4/2023). A 11 de maio, Francisco adicionou os mártires ortodoxos coptas, mortos pelo Estado Islâmico em 2015, à lista oficial de santos da Igreja Católica, em mais uma ação geradora de compromisso entre Igrejas.

A estratégia vaticana – na qual têm estado envolvidos o economista Stefano Zamagni, até recentemente presidente da Pontíficia Academia de Ciências Sociais (Angelus News, 3/5/2023), e, em particular, o bispo Paul Gallagher, discreto arquiteto da “diplomacia da reconciliação” que a Santa Sé vem construído e que procura a substituição das reivindicações mútuas (Vatican News, 24/4/2023) –, passa pelo desenvolvimento de ações humanitárias de apoio à população ucraniana e aos refugiados da guerra (com suporte da Santa Sé a iniciativas de diversas organizações católicas, entre outras a Pax Christi, a Pro Civitate Christiana, etc.), bem como o apoio prestado pelo Santo Quartel General ao transporte de cereais ucranianos que atravessam o Mar Negro.

Esta última ação foi, aliás, objeto de reconhecida gratidão do primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmyhal, quando em 27 de abril último, se deslocou ao Vaticano para se reunir com Francisco, o secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, e o incontornável bispo Gallagher, (Vatican News, 27/4/2023). Possivelmente preparatório também da visita de Zelensky ao Papa, agora realizada, aquele encontro serviu para colocar ênfase na colaboração, entre a Ucrânia e o Vaticano, para o resgate de crianças ucranianas levadas para a Rússia, por meio de trocas de prisioneiros através de embaixadas. Tema que, não por acaso, voltou a merecer referência nas súmulas da audiência do dia 13 de maio.

Somando-se a um conjunto de mediadores que buscaram e tentam encontrar uma solução para o fim da guerra na Ucrânia, a Santa Sé reconstrói-se, depois de mais de um ano de guerra em solo europeu, como ator diplomático de primeira água, alicerçado na ideia de neutralidade, com ritmo próprio e pouco dependente de pressões internas (da Igreja Católica universal) ou externas (da comunidade internacional), que com maior ou menor publicidade já haviam questionado o papel do Papa nos esforços pela paz na Ucrânia. Esta imagem do Vaticano pode agora começar a prevalecer sobre uma dimensão bem conhecida que é a da extensa crítica de Francisco ao militarismo norte-americano ou aos imperialismos.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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