O mito de ‘deitar cedo e cedo erguer’ na sincronização cerebral

Em Portugal, trabalhar até muito tarde é considerado, erradamente, sinónimo de maior produtividade. Nada podia estar mais longe da verdade, e a ciência ajuda a perceber.

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Desalinhamentos do ritmo interno com o da luz natural alteram substancialmente o desempenho cognitivo, o metabolismo e a resposta imune bruce mars/unsplash

O sono ou a forma como dormimos transporta vários preconceitos curiosos que importa esclarecer. Um deles é o facto de se considerar que as pessoas que acordam mais cedo são menos preguiçosas que as outras. Por outro lado, que trabalhar até muito tarde seja considerado, erradamente, sinónimo de maior produtividade, em Portugal. Nada podia estar mais longe da verdade, e a ciência ajuda a perceber.

Os ritmos circadianos são os processos biológicos internos que regulam o ciclo sono-vigília, o perfil hormonal e o metabolismo. Estes ritmos são controlados pelo núcleo supraquiasmático (SCN), que integra o hipotálamo no cérebro e são regulados pelo ciclo luz/noite. Este núcleo coordena a libertação de hormonas e neurotransmissores, que promovem o estado de alerta/vigília durante o dia e o sono reparador à noite, como o cortisol (estado de alerta) e a melatonina (sono).

Individualmente, há pessoas com perfis mais noctívagos ou mais madrugadores, distribuindo-se entre vários perfis intermédios e chegando aos mais extremos. Os primeiros são caracterizados por uma preferência natural por deitar tarde e acordar mais tarde de manhã. Os segundos, pelo contrário, normalmente vão cedo para a cama e acordam também cedo pela manhã. Ambos igualmente produtivos, mas com picos de atividade a horas distintas.

A sincronização adequada dos ritmos circadianos é crucial à saúde e função cognitiva. Há pessoas com ritmos mais marcados, que acordam sempre à mesma hora, independentemente do relógio, e outras que dormem e acordam mais facilmente a horas diferentes. Estas diferenças individuais, quer na frequência, quer na amplitude dos ritmos circadianos são determinadas sobretudo por fatores genéticos e moduladas por fatores ambientais, como exposição à luz e interações sociais.

Em termos práticos, os noctívagos demoram mais a despertar de manhã, tomam as refeições mais tarde e têm um pico de atividade e desempenho cognitivo mais tardio no dia. Os madrugadores, por seu lado, ficam despertos e alerta rapidamente de manhã, tendem a tomar refeições mais cedo e não os convidem para reuniões pela noite dentro. Em situações nas quais é possível adaptar o horário de trabalho a este ritmo interno, isso traduz-se num aumento de desempenho, tendo um impacto positivo na saúde mental e física. Quando tal não é possível, é importante manter uma boa qualidade de sono e compensar quando é possível.

No meu grupo de investigação estudámos os ritmos de cada membro e eu tento adaptar as reuniões individuais ao ritmo de cada um. E ao meu, claro. Em muitos deles, o cedo não é sinónimo de maior eficiência. Pelo contrário.

Independentemente destas características individuais, os ritmos sofrem alterações naturais ao longo da vida. Na infância, temos ritmos mais matutinos que se tornam mais tardios na idade adulta. À medida que envelhecemos, voltamos a ser mais matutinos e com perfis de sono e atividade mais fragmentados. Em média, as mulheres têm perfis mais madrugadores que os homens da mesma faixa etária.

Curiosamente, durante a adolescência, os ritmos são biologicamente mais tardios. Portanto, se em casa os seus filhos adolescentes são muito lentos e de cérebro ‘enevoado’ de manhã e não têm nunca sono à noite, nada tem nada a ver com preguiça ou desleixo. Faz parte do desenvolvimento normal, e estas alterações moderam-se mais tarde. Há vários estudos realizados na Alemanha, que demonstram que em escolas do ensino secundário, se os exames forem feitos às 10h em vez de às 8h da manhã, as notas sobem consideravelmente.

Desalinhamentos do ritmo interno com o da luz natural, como acontece quando atravessamos vários fusos horários de avião (causando jet lag) ou em situações de trabalho por turnos, sobretudo rotativos, alteram substancialmente o desempenho cognitivo, o metabolismo e a resposta imune. Há empresas que já aplicam este conhecimento na prática e adaptam as escolhas de turnos dos seus trabalhadores a estas diferenças individuais.

Os ritmos circadianos mais matutinos são geralmente considerados mais saudáveis, uma vez que estão mais alinhados com o ciclo natural dia/noite e promovem uma melhor qualidade do sono. Podem ter menor risco de desenvolver patologias do sono, como insónia e apneia do sono, menor índice de massa corporal e menor risco de desenvolver diabetes de tipo 2. Por outro lado, os indivíduos com ritmos mais tardios têm mais probabilidade de ter menor qualidade de sono, aumento da sonolência diurna e maior risco de desenvolver distúrbios do sono, uma vez que sofrem, em geral, de maior desajuste em relação ao horário de trabalho clássico, levando à privação crónica do sono e comprometimento da função cognitiva.

Está na hora de deixarmos de considerar preguiçoso o amigo ou colega que parece ainda estar pouco alerta nas reuniões das 8h da manhã, ou aquele que não aguenta uma festa até de madrugada. Os padrões de sono e estilo de vida podem ser distintos e igualmente produtivos, dependendo destas diferenças individuais nos ritmos circadianos.

A manutenção de um horário regular de sono e alinhamento dos ritmos circadianos internos com a atividade diária beneficiam a saúde e funções cognitivas, quer sejamos matutinos ou mais noctívagos. Para ‘sincronizar’ o cérebro com a luz, experimentem ler o maravilhoso Klara e o Sol, dr Kasuo Ishiguro e ouvir a música ‘Who loves the Sun’ dos fantásticos Velvet Undergound.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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