Amílcar Cabral e Basil Davidson, um britânico amigo do “Terceiro Mundo”

Entre os vários ativistas ocidentais que apoiaram os anticolonialistas africanos, destacam-se figuras como o jornalista britânico Basil Davidson, um “companheiro de estrada” do “Terceiro Mundo”.

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Da esquerda para a direita, Mário Pinto de Andrade, Ana Maria Cabral, Pedro Pires e Basil Davidson, na Cidade da Praia, em 1980 Casa Comum/Fundação Mário Soares

No decurso da Guerra Fria — e em particular nos anos do mccarthysmo e na fase final do estalinismo — o termo “companheiro de estrada” adquiriu conotações ambíguas, se não mesmo pejorativas nos países ocidentais. A expressão foi inicialmente cunhada em plena Revolução Russa por alguns líderes bolcheviques que pretendiam referir-se a membros da intelligentsia que “trilhavam o caminho” da revolução, mas sem se decidirem por uma filiação no Partido Bolchevique. No mundo ocidental em geral, a expressão seria usada sobretudo para descrever aqueles que simpatizavam com a URSS, e o comunismo em geral, ficando, contudo, a um passo da militância partidária.

O jornalista e historiador britânico Basil Davidson (1914-2010) foi várias vezes apelidado de “companheiro de estrada” dos comunistas do seu país — e na atmosfera mais áspera de finais dos anos 1940 e inícios dos anos 1950 esse labéu trouxe-lhe vários dissabores. Davidson estava filiado no Partido Trabalhista, e chegaria a ser sondado para uma candidatura ao Parlamento de Westminster, mas era também alguém que cultivava relações de amizade com militantes do Partido Comunista da Grã-Bretanha, especialmente os ligados a meios intelectuais e universitários. Embora crítico da orientação “atlantista” do seu país, e de medidas como a remilitarização da Alemanha Ocidental, Davidson não deixaria de se demarcar de algumas das iniciativas mais controversas da URSS, como a intervenção na Hungria em 1956, acerca da qual escreveu várias reportagens.

Dito isto, o rótulo talvez não fosse inapropriado para descrever o tipo de relacionamento que manteve com várias causas políticas naquilo que em tempos se convencionou chamar “Terceiro Mundo” e hoje muitos preferem designar de “Sul Global”. Davidson fez reportagens sobre os primeiros anos do apartheid na África do Sul e depois tornou-se um militante da organização que no Reino Unido lutou contra o regime racista de Pretória (o Movimento Anti-Apartheid) e de muitos outros grupos de pressão anticolonial. Conheceu e biografou Kwame Nkrumah, o “pai” do Gana independente e um dos mais carismáticos líderes africanos do seu tempo. Como repórter freelancer, cobriu inúmeras lutas de libertação em África entre os anos 1950 e 1970 e, já septuagenário, ainda viajou até ao Corno de África para escrever sobre o conflito que daria origem à independência da Eritreia em 1991 — uma causa que apoiou contra a ditadura pró-soviética do coronel Mengistu.

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Basil Davidson DR

Mas talvez não exageremos se considerarmos que, de todas as lutas que acompanhou, as da África de expressão portuguesa assumiram uma relevância muito particular no seu trajeto. Para além das largas dezenas de artigos e reportagens que lhes dedicou, elas deram-lhe o ensejo para publicar dois livros decisivos em plena guerra colonial — já lá iremos. Entre os seus muitos “chapéus”, aquele que o identificava como o mediador-chave dos nacionalistas africanos das colónias portuguesas no mundo de língua inglesa deve ter sido um dos que mais prazer lhe deu usar.

Davidson e as lutas contra o colonialismo português

Tudo terá começado em 1954, quando a revista norte-americana Harper’s lhe encomendou uma investigação para assinalar os 50 anos de uma das mais impactantes reportagens publicada nas suas páginas, aquela que o jornalista Henry Nevinson dedicou às práticas neo-esclavagistas que subsistiam em Angola e São Tomé e Príncipe (e depois vertida no livro A Modern Slavery, 1904), no auge do ciclo do cacau.

Subsistiam suspeitas de que meio século mais tarde, modalidades de trabalho forçado ainda persistiriam nas colónias portuguesas da África ocidental. Embora com menos liberdade para circular pelos territórios portugueses, Davidson conseguiu, ainda assim, reunir indícios suficientes para mostrar como o trabalho por “contrato” era, na verdade, uma figura jurídica que dava cobertura a situações de exploração laboral profundamente desumanas na segunda metade do século XX. O seu trabalho conheceria uma larga circulação através de publicações como a Harper’s, mas também a New Statesman, o semanário britânico para o qual escrevia regularmente.

Em 1955, essas reportagens seriam fundidas com os seus apontamentos e observações acerca do Congo Belga num livro intitulado The African Awakening, que imediatamente estabeleceu a sua reputação como um perito de renome internacional acerca das questões africanas contemporâneas. Davidson tornar-se-ia uma espécie de “inimigo número 1” do regime salazarista na imprensa britânica, mas também uma referência para a intelligentsia que começava a dar expressão política à consciência nacionalista na África de expressão portuguesa. Mário Pinto de Andrade, que fez a recensão ao livro de Davidson na Présence Africaine, tornou-se um dos seus amigos e informantes acerca da situação nas colónias portuguesas.

Amílcar Cabral foi outro dos seus interlocutores. Quando o já líder do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) empreende uma viagem a Londres em 1960 (com um visto de turista), Davidson torna-se uma espécie de anfitrião informal, arranjando-lhe alojamento em casa de amigos, e proporcionando-lhe contactos com figuras da esquerda trabalhista. Aliás, Davidson asseguraria a tradução e o prefácio do importante panfleto que Cabral (sob o pseudónimo de Abel Djassi) publicaria aquando da sua passagem pelo Reino Unido, The Facts about Portugal’s African Colonies (traduzido nas obras de Cabral como A Verdade sobre as Colónias Africanas de Portugal). A publicação seria, de resto, assegurada pela Union of Democratic Control, uma organização pacifista fundada no início da I Guerra Mundial e que nos anos 1950 procurara reorientar-se para as questões coloniais sob a batuta de Davidson, o seu secretário executivo.

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Apontamentos manuscritos por Amílcar Cabral em Março de 1960[presumivelmente em Londres], com desenho representando um esboço de bandeira de uma bandeira Casa Comum/Fundação Mário Soares

Além de ser um aliado inestimável na imprensa britânica, Davidson desempenharia também um papel de mediador dos partidos “modernistas” e “progressistas” (PAIGC, MPLA e Frelimo) da África portuguesa junto de círculos políticos trabalhistas. No contexto da Guerra Fria, e com Portugal a tentar maximizar a sua influência junto dos aliados da NATO, esse tipo de conexões era importante para ajudar a vencer desconfianças que resultavam da proximidade daqueles movimentos à URSS e China (mau grado as desconfianças que os trabalhistas mais centristas pudessem ainda ter acerca de Davidson), nomeadamente para garantir concessões de vistos de entrada no Reino Unido e alguma condescendência das suas autoridades para com atividades “antiportuguesas” exercidas no seu território — em 1971, por exemplo, Cabral realizaria um minipériplo por algumas cidades britânicas, partilhando o palco com políticos trabalhistas e exilados portugueses na Europa, como José Medeiros Ferreira.

Mas o contributo porventura mais impactante de Davidson seriam os seus dois livros de 1969 e 1972, respetivamente dedicados à luta do PAIGC, na Guiné (The Liberation of Guiné. Aspects of an African Revolution), e do MPLA, em Angola (In the Eye of the Storm. Angola’s People). Ambos seriam publicados em paperback na prestigiada African Library da Penguin, o que lhes granjeou uma vasta circulação.

Os dois livros revelavam as enormes qualidades de Davidson como repórter de guerra, desde logo a sua resistência no acompanhamento dos guerrilheiros em longas marchas (e para isso o seu treino de antigo agente do Special Operations Executive nos Balcãs na II Guerra Mundial não terá sido irrelevante); ou o seu talento para evocar paisagens, pessoas e situações perigosas. Mas essas reportagens, notaram depois alguns críticos, pecavam também por um excesso de “militância”, empolando os feitos da guerrilha (o seu controlo sobre umas sempre exageradas “zonas libertadas”); e minimizando a contestação por que líderes como Cabral e Agostinho Neto estavam a passar.

No caso de Cabral, isso era particularmente evidente na subestimação das cisões entre cabo-verdianos e guineenses, ou entre os que conduziam a luta “no exílio” e os que a travavam nas matas. No caso de Neto e do MPLA, pelo contrário, Davidson parecia estar bem ciente da gravidade das fraturas que se estavam a agravar no seu interior, e da fragilidade de Neto enquanto líder de guerrilha — e talvez por isso, uma das fotografias que integrava o encarte do livro, e uma das suas badanas, representava, precisamente, um Davidson de casaco de ganga ao lado de Agostinho Neto de AK-47 ao ombro.

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Basil Davidson e Agostinho Neto no Moxico, em Angola DR

Depois das independências

Davidson continuaria a acompanhar a trajetória dos novos estados africanos lusófonos depois das independências. Não sem alguma ponta de amargura, como terá confidenciado a amigos, especialmente no tocante a Angola, onde em 1977 as querelas internas do MPLA explodiriam no alegado golpe, e contragolpe, do 27 de maio. Em 1986, Davidson consagraria uma obra ao arquipélago de Cabo Verde (As Ilhas Afortunadas) e ao difícil trabalho de construção do Estado (nation-building) que o governo do PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) aí empreendia, anos depois de se esboroar o projeto da unidade Guiné-Cabo Verde. Parecia ser o último baluarte do sonho cabralista — mas em 1990, de forma inesperada, o PAICV seria varrido do poder nas primeiras eleições multipartidárias da história do país por um eleitorado desencantado com os resultados da sua governação.

Para Davidson, terá sido mais um episódio que serviu para reforçar o seu desencanto para com o projeto independentista, demasiado vinculado a um modelo de Estado-nação que reunia o pior dos nacionalismos europeus (os modelos modernizadores top-down) e do colonialismo tardio (a governação em “estado de sítio” permanente). Talvez por isso, uma das suas últimas obras, O Fardo do Homem Negro (1992), publicada com a guerra da ex-Jugoslávia em pano de fundo, procurasse fazer uma apologia do regresso às ideias descentralizadoras e dos modelos federativos apregoados por alguns dos ideólogos do pan-africanismo.


Ler mais:

Basil Davidson, A Libertação da Guiné. Aspetos de uma Revolução Africana (Sá da Costa, 1975); Angola no Centro do Furacão (Delfos, 1974); O Fardo do Homem Negro. Os Efeitos do Estado-Nação em África (Campo das Letras, 2000).


Pedro Aires Oliveira é historiador, investigador no IHC/IN2PAST e professor na Universidade Nova de Lisboa. É autor, entre outros livros, de Os Despojos da Aliança A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa 1945-1975.

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