Ideologias em confronto ou gato por lebre

Em Portugal a deriva liberalista tem sido evidente, todos os sectores públicos estão em convulsão, pois o que mais interessa é ter as contas certas, como manda a UE.

Sistematizar conceitos é importante para se entender do que estamos a falar. O sistema liberal formou-se, como todos sabemos, no século XIX, no confronto com o absolutismo. Por isso, todos quantos somos democratas pertencemos ao sistema liberal – o que não quer dizer que tenhamos aderido ao liberalismo, um sistema económico-social de direita.

Os que professam o liberalismo deveriam designar-se liberalistas (ou libertinos, por vezes…), porque, ao designarem-se liberais, contribuem para a confusão dos conceitos. Dentro do sistema democrático, mas fora do liberalismo, formaram-se duas ideologias, uma na direita, a democracia-cristã, herdeira da doutrina social da Igreja depois estendida para lá da confissão católica, e outra de esquerda, a social-democracia, herdeira de conceitos marxistas, mas bem demarcada dos excessos comunistas. No confronto entre estas duas ideologias democráticas que governaram durante décadas o Ocidente, as diferenças programáticas foram sempre mais de pormenor que de fundo.

Os liberais foram hibernando e reaparecendo de vez em quando. A própria União Europeia, através das políticas que propagandeia, outra coisa não faz senão impor regras de mercado livre, só em pequeno grau atenuadas por alguma política social.

Portugal não escapou à infecção. Os antigos democratas-cristãos mudaram-se de armas e bagagem para a direita liberal ou para a extrema-direita; um conhecido ex-CDS escrevia que a direita ou é liberal ou não é direita – uma heresia para a doutrina cristã! A esquerda democrática segue o mesmo caminho – embora não abandonando a denominação de socialismo democrático, já pouco dele se avista.

Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia, escrevia em 2019 que o neoliberalismo tem prejudicado gravemente a democracia nos últimos 40 anos.

Em Portugal a deriva liberalista tem sido evidente, todos os sectores públicos estão em convulsão, pois o que mais interessa é ter as contas certas, como manda a UE. Sejamos claros, nenhum governo conseguiria resolver de uma só vez os problemas em que o país está mergulhado, mas as opções é que distinguem uma esquerda democrática de um liberalismo encapotado. Por mim, mais uma vez atenho-me ao sector primário e ao ambiente (já é quase uma obsessão…) cujas políticas, na nossa condição mediterrânica e perante o risco climático, decidirão da sustentabilidade e da perenidade da biodiversidade. Vejamos então a linha que tem sido seguida.

Nos anos 90 do século passado, Cavaco Silva pagou subsídios aos pequenos e médios agricultores para deixarem de trabalhar as terras – abandono progressivo do mundo rural! Depois extinguiu os Serviços de Extensão Rural que eram fundamentais para chamar gente nova à agricultura e incentivar o associativismo. A grande agro-indústria tem dinheiro para pagar aos seus técnicos.

Com a mudança para governos socialistas, as coisas poderiam ter mudado – mas não. Em 2006, o então ministro da Administração Interna, António Costa, e o colega da Agricultura prosseguiram com o desmontar do Ministério da Agricultura e Florestas, retirando aos Serviços Florestais os guardas-florestais e vindo a acabar com aquele serviço.

Quem é que foi lucrando com esta política? A agro-indústria e a indústria da celulose.

É que os técnicos florestais, mesmo quando o ministério esteve por inteiro entregue ao pessoal das celuloses, tinham a sua ética e não permitiriam o excesso da eucaliptização; também os planos de ordenamento das áreas protegidas eram outro obstáculo a esse mercado livre florestal…

Eram alvos a abater – e foram!

As Direcções Regionais de Agricultura eram fundamentais até para acompanhar a experimentação de novas culturas adaptadas às alterações climáticas – mas não interessavam, têm sido paulatinamente desactivadas e, agora, parece que vão acabar como apêndices das CCDR.

Por obra e graças de governos “socialistas” (o que têm a ver com a social-democracia?) as Áreas Protegidas perderam a sua estrutura fundacional e parques naturais com a importância da Serra da Estrela, da Arrábida, da Ria Formosa, etc., deixaram de ter um director responsável, o seu património está, à vista de todos, ao abandono, a sua falta de ligação com as populações – que era uma das razões da sua existência – perdeu-se. Conservação da Natureza (CN) e Ordenamento do Território (OT) deixaram de contar para a política de Ambiente.

Não se vê uma linha programática neoliberal em todo este percurso?

Para piorar a situação, não temos uma opinião pública suficientemente motivada para constituir uma massa critica nesses domínios; faltou sempre a educação ambiental como fermento de motivação da população – melhor assim, dirão alguns…

Continuam a sair todos os anos catadupas de leis para fazer de conta que se está a tratar do sector florestal – mas o negócio do combate aos incêndios é altamente lucrativo, muito mais do que reconstituir uma quadrícula territorial de casas e guardas devidamente enquadrados por administradores regionais. Ora, como antes estava tudo mal e agora é que está tudo bem, dizem os manda-chuvas, aí temos um ICN(F) sem OT a provar que, tal como está organizado, não funciona – mas é disso mesmo que o neoliberalismo gosta.

E cá vamos, embalados por uma política neoliberal que nos é vendida como de esquerda, mas de claro apoio aos mercados livres da agricultura, das florestas, com a RAN e a REN a continuarem debaixo do fogo de algumas autarquias e dos “investidores” no negócio ambiental.

Carpe diem, aproveitemos o presente e não nos preocupemos com o futuro…

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