O dia em que Lavrov tropeçou “em casa”

Numa conferência na Índia, o chefe da diplomacia russa ouviu os risos da plateia quando afirmou que a Federação Russa se estava a defender de uma “guerra lançada sobre si”.


Em Nova Deli, perante uma audiência sensível à ordem política internacional, o ministro das Relações Exteriores da Federação Russa foi incapaz de justificar a guerra e acabou mesmo por ouvir o que não queria.

A conferência Raisina Dialogue, organizada pelo think tank indiano Observer Research Foundation (ORF), reúne, anualmente, líderes políticos de todo o mundo em Nova Deli, capital da Índia, para debater temas pertinentes à ordem internacional e à geopolítica. Desde 2016 já contou com a presença do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, do ministro das Relações Exteriores da Holanda, Wopke Hoekstra, e até mesmo do ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João Cravinho. Esta foi a vez de Serguei Lavrov, ministro de confiança do Presidente Vladimir Putin, experimentar a atenção do público deste think tank que conta com o alto patrocínio do governo indiano, no dia após o término da conferência ministerial do G20 acolhida, desta feita, pela Índia.

Numa conversa moderada pelo presidente da ORF, Sunjoy Joshi, Lavrov tentou convencer quem assistia da necessidade de a Federação Russa se defender do que considerava ser um ataque da NATO à sobrevivência do seu país. Incapaz de responder às sucessivas perguntas do moderador sobre o caminho para a paz ou sobre as consequências que o mundo enfrenta pela guerra perpetrada pelas tropas russas em solo ucraniano, o ministro russo contra-atacou com a narrativa antiocidental.

Mesmo antes de encontrar algum apoio no público – enquanto falava dos resultados das guerras no Iraque ou no Afeganistão , Lavrov nunca se desviou da mensagem que queria transmitir aos parceiros indianos: a de que o Ocidente não é um parceiro confiável, acusando-o de procurar, através das instituições de Bretton Woods, chantagear nações soberanas de todo o mundo a troco de apoio político na sede das Nações Unidas. No entanto, foi mesmo no período final de perguntas vindas de participantes que chegou a confirmação da falta de adesão à sua mensagem: quando perguntado sobre a nova estratégia energética russa em função das sanções europeias, acabou por provocar um riso genérico na sala ao afirmar que “[a Federação Russa] se defendia da guerra lançada sobre si [pelo governo de Kiev] utilizando os ucranianos”.

Ora, num momento em que a Rússia procura fortalecer a sua parceria com a República Popular da China e com a República da Índia, parceiros dos quais depende como nunca na história recente, este episódio inevitavelmente acrescentará tensão nas relações russo-indianas. E este é um dado particularmente relevante para o futuro da Ucrânia e do mundo, uma vez que sem um bloco coeso dos RIC (Rússia, Índia, China) – com consequências para a morfologia dos BRICS, onde se juntam Brasil e África do Sul – não existe qualquer alternativa racional à Federação Russa que não passe por pôr fim à barbárie contra o povo ucraniano.

Do lado europeu, o desafio permanecerá idêntico ao do último ano: procurar desenvolver um modelo democrático, económico, securitário e social que não passe pela dependência russa ou pela subalternização exclusiva aos interesses vindos do outro lado do atlântico. A União Europeia e o continente europeu encontram-se, por isso, na encruzilhada que nunca esperariam viver e pela qual sofrerão nas próximas décadas, caso o apoio firme à liberdade do povo ucraniano e ao respeito pelo direito internacional esmoreça.

Essa coesão e determinação passarão, sem ilusões, pelo grau do apoio e integração europeia dos Balcãs ocidentais, onde a Rússia, com os seus apoios em Belgrado, não abdicará de exercer a sua influência para desestabilizar a região e a paz aparente vivida na última década – seja no Kosovo seja na Bósnia-Herzegovina.

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