Correntes d’Escritas: O carteiro leva duas cartas para Ana Luísa Amaral

Numa sessão em que se falou de nascimento, morte, milagre, desmilagre e ChatGPT, ficou-se a conhecer a formação do mundo segundo o sagrado africano. E ouviu-se cantar.

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Todas as mesas do encontro deste ano têm como ponto de partida os escritos de Ana Luísa Amaral RFS

O tema da mesa inaugural da 24.ª edição do Correntes d’Escritas, festival literário que decorre na Póvoa de Varzim até dia 18 de Fevereiro, era “O milagre do mundo a acontecer”. Frase extraída do poema de Ana Luísa Amaral “Como desabitado, o coração”. Todas as mesas do encontro deste ano têm como ponto de partida os escritos da poetisa e professora que morreu em Agosto de 2022. Álvaro Laborinho Lúcio foi o primeiro interveniente e remetente: “Onde estás tu, Ana Luísa? Diz-se por aí que morreste. Que me importa a mim o que se diz. (…) Sem te despedires, foste embora.”

Numa leitura pausada e contida, o escritor invocou outros poetas e autores, alguns passaram pelo Correntes d’Escritas. “Procura aí o Eugénio e ele te dirá: ‘Não sei como vieste, mas deve haver um caminho para regressares ao mundo. (…) Tens estado com o Pina? Já encontraste o Herberto? Já viste a Piñon? O que é feito do Luis? Onde estás agora? Com quem andas tu? O que fazes desse lado, tão nova, para seres criança aí e, aqui, estrela?” Referia-se a Eugénio de Andrade, Manuel António Pina, Herberto Helder, Nélida Pinõn e Luis Sepúlveda.

Também discorreu sobre Lázaro e prometeu ceder o seu lugar a Ana Luísa naquela mesa, se ela decidisse aparecer. “O que não sabes é que, este ano, estás em todas as mesas.” É verdade.

Mais adiante, seria Hélia Correia a ler uma carta para o mesmo destinatário. A escritora, depois de explicar que uma parte dela estava feliz por estar de volta à Póvoa e outra estar desgostosa, explicou: “Não é fácil estar aqui sem a Ana Luísa.”

Normalmente, não escreve as intervenções, mas acabou por redigi-la em forma de carta. E achou curioso que também Laborinho Lúcio o tivesse feito.

Assumidamente, incorremos agora na violação de correspondência e reproduzimos na totalidade o texto que escutámos da leitura de um manuscrito. Pode ter uma ou outra imprecisão, já que a própria autora, Prémio Camões em 2015, reconheceu que nem sempre consegue descodificar a sua letra. E nós também tivemos uma dificuldade: como desmembrar um texto assim?

Aqui vai: “O milagre do mundo, Ana Luísa, é estares aqui e estar a acontecer. O milagre do mundo é que, apesar do mundo em desmilagre que é o nosso, o meu amor por ti entra em apneia e recusa afundar-se. Esbracejando, sobe de novo a esta superfície, onde tu eras júbilo e encontro, onde as nossas cabeças se inclinavam uma para a outra e ríamos e ardíamos sobre temas menores, como o tabaco. E tu cantavas uma velha canção minha. Uma preparação para o solene momento de falarmos na Maria Velho da Costa. E o tom de voz baixava e o milagre do mundo acontecia, quando o seu nome como que aparecia escrito entre nós, escrito através de nós.

“O milagre do mundo, Ana Luísa, fazia-me deter subitamente nas minhas correrias pela casa, quando do rádio na sala vinha a tua voz e o som que os livros fazem ao abrir. Eu nunca assistira a semelhante entendimento entre o corpo que diz e o corpo lido. Eu que não gosto de ouvir ler, nem gosto muito de ouvir falar de literatura. Estava, bem o sabia, noutro sítio, noutra esfera, noutra ocorrência da respiração, nesse lugar de espanto e de deslumbramento que é o miraculum, onde estava a tua voz.

“No desmilagre deste mundo, no terror que é o nosso horizonte, Ana Luísa, tu pedes a pergunta que não quer ouvir respostas da realidade. A pergunta infantil que quer consolo. Essa pergunta ‘a poesia salva?’ Alguém já fez esta pergunta ao ChatGPT?

“Não posso competir com a inteligência artificial e esse facto é tão assustador que corre o risco de paralisar. Mas ainda invisto contra os obstáculos, não sei se ainda posso ser humana, mas sei que posso ser um animal que trava a luta da sobrevivência. E, olha, tenho aqui o teu poema. O que eu queria era lê-lo e levantar com as tuas palavras a plateia. Mas não há tempo.

“Poderei talvez registar a imagem da poeta, redigindo uma espécie de guião. As folhas e as pedras, a paisagem, as construções, os cheiros correm para os teus olhos, entram por eles num lugar do cérebro que escapa ao mapa da anatomia e te convoca essas palavras que já não obedecem ao impulso da prática, são livres e ágeis na transfiguração. E seguem para a mão que as põe em página. Um relâmpago preso no cinzento. Um transporte para a profundidade das coisas, para a beleza, para o poema.

“O milagre do mundo a acontecer, Ana Luísa, és tu.”

O sagrado africano

Depois de muitos aplausos para Hélia Correia, ouviu-se a voz de Paulina Chiziane, moçambicana, vencedora do Prémio Camões 2021, primeira mulher africana a receber esta distinção. Logo confessou que ficou “meio zonza” com o tema “o milagre a acontecer”. Então, socorreu-se da mitologia. Primeiro, da judaico-cristã. “Como foi criado o mundo? O mundo foi criado com palavras. Deus, algures escondido, disse: “Que haja luz, que haja estrelas, que haja mar, oceanos, pessoas, cabritos, formigas, etc..”

Não tem dúvidas de que o mundo foi criado através da palavra. “A Ana Luísa descobriu a fórmula da ressurreição através da palavra. Ela não está entre nós, mas continua viva, estamos a invocá-la. Tornou-se imortal através da palavra. Essa palavra que nos une aqui nas Correntes d’Escritas.”

Seguindo na revelação do que investigara, afirmou: “Dizem que o sagrado judaico-cristão é o mais perfeito. Impõem-nos até a nós, os africanos, acreditarmos nesta versão. Às vezes, surgem umas correntes do mundo que dizem: ‘Precisamos de civilizar África.’ E vêm com essa história da criação do mundo.” Mas é uma versão que lhe agrada, admite. Porque é através da palavra que se dá a sua gestação.

Com obras traduzidas na Alemanha, Espanha, EUA, França e Itália, Paulina Chiziane socorreu-se ainda do sagrado africano para a sua apresentação no Cine-Teatro Garrett. Sala cheia, onde se ouviu na plateia referirem-se-lhe como “diva”.

“Na nossa mitologia, o mundo também foi criado através da palavra por um Deus misterioso que nunca ninguém viu.” E descreveu: “Esse nosso Deus chama-se Zambi. Significa Deus em várias línguas. Zambi não tem sexo, não é mulher nem é homem, mas é uma energia que deu à luz várias coisas. A primeira das quais é a Zâmbia. Nós temos um país chamado Zâmbia, onde nasce um rio que se chama Zambeze. Portanto, Zambi deu à luz um país e um rio. E o rio foi regando vários países, conduzindo alimento.”

Depois, falou de outras terras banhadas pelo rio Zambeze, como Angola e Zaire. Neste último, conta, “o rio também se chamava Zambi, mas os franceses quando chegaram acharam que Zambi era coisa do Diabo e decidiram chamar-lhe Zaire”.

O Zambi/Zambeze foi banhando vários países, incluindo Moçambique, por onde passa para desaguar no mar. “Temos uma província chamada Zambézia”, recordou.

E deixou um breve lamento: “Pouco se conhece do sagrado africano e há uma tendência para a ‘pequenização’ deste milagre do mundo a acontecer.” Lembrou de novo que a palavra é lugar de gestação do mundo: “É este lugar também de ressurreição, a palavra tem força.” E recorreu a dois provérbios africanos. Um diz: “Cada coração é um mundo.” Há outro: “Existem dois mundos em cada mundo, o interior e o exterior.”

Acabou por concluir: “O poema da Ana Luísa Amaral levanta exactamente esta questão. ‘Quantos mundos o mundo tem?’.”

Acredita que com o seu poder criador ou destruidor, a palavra é a única arma que consegue penetrar vários mundos. “Eu consigo penetrar no mundo do outro, até no seu lugar mais sombrio, usando a palavra certa.”

Complementando no final com informação geopolítica: “Eu venho de um país que tem a história que tem, de colonização, que deixou muitas marcas. A grande arma para a destruição de um povo e dos povos africanos dessa altura chama-se ‘palavra’.” E repetiu o que já havia dito, que Ana Luísa Amaral descobriu a fórmula da ressurreição.

Não lhe enviou uma carta, mas certamente aguarda resposta ao seu recado.

Elogio da leitura em voz alta

Da mesma mesa fez parte Antônio Torres, romancista brasileiro, que sublinhou ser “milagre estarmos aqui na desordem que vivemos”. Disse ainda: “Alegre, trevoso, cruel mundo, a fazer a paz acontecer apenas no intervalo de duas guerras. Fanatismos, preconceitos, pandemias e pandemónios.” Elogiou a leitura em voz alta, dando exemplos felizes de quem “inunda de outros mundos a cabeça de crianças do interior do Brasil, que nem um rio têm”. E cantou. Foi bonito.

Já a espanhola Elisa Victoria — cuja editora em Portugal venceu o Prémio Correntes d’ Escritas desta edição, Maria do Rosário Pedreira —, que não gosta de ler em voz alta nem de falar em público, fez uma espécie de manifesto contra “os animais maltratados” e revelou que “o seu coração se entristece muito com as pessoas que sofrem”.

Tímida, mas assertiva, fez-nos saber num sotaque forte do Sul de Espanha: “Ao ler Ana Luísa Amaral, recordei a minha origem humilde. Vender livros num país que não é o meu é, para mim, um milagre. E logo num idioma que tanto amo.”

Quanto à correspondência enviada da Póvoa de Varzim para Ana Luísa Amaral, espera-se que um carteiro equivalente ao de Pablo Neruda não desista de entregar cartas, mesmo que poucas — nem da poesia.

O PÚBLICO esteve na Póvoa a convite do festival

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