Os avisos certeiros sobre fungos na série The Last of Us

Na série apocalíptica, um fungo violento infecta humanos e causa uma pandemia global. Num mundo cada vez mais quente, as infecções fúngicas podem mesmo aumentar e tornarem-se mais difíceis de tratar.

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Duas imagens dos fungos na série The Last of Us. Cientistas dizem que não é provável que os fungos controlem os humanos da mesma forma que na série, mas as alterações climáticas podem torná-los mais frequentes e mais difíceis de tratar Liane Hentscher/HBO

Há uma nova série televisiva pós-apocalíptica na HBO, baseada num videojogo com o mesmo nome, que está a dar que falar – e com razão.

Em The Last of Us, um fungo começa a causar infecções violentas em humanos e causa uma pandemia global. A sociedade começa a entrar em parafuso por causa disso, o que pode ser divertido de ver. Mas, pondo de lado o sangue, a violência e o declínio da civilização humana, os cientistas dizem que a série televisiva alerta para vulnerabilidades e ameaças reais.

Num mundo cada vez mais quente, as infecções fúngicas nas pessoas podem aumentar e propagar-se mais rapidamente do que o ritmo a que os tratamentos são desenvolvidos (mesmo que o perigo não surja ao estilo cinematográfico que vemos na HBO). Na realidade, os fungos já representam um perigo para muitas populações imunodeprimidas.

“Os fungos matam mais humanos do que a malária”, afirmou o entomologista David Hughes, que partilhou o seu conhecimento de investigação sobre fungos com os criadores do videojogo em que se baseia a série. São completamente ignorados. É interessante fazer as pessoas a pensar sobre isto.

Os fungos são um dos seis reinos da vida. Imaginamo-los muitas vezes como cogumelos, leveduras, líquenes – ou por vezes até como pé-de-atleta. Parecem ser plantas, mas não geram o seu próprio alimento. Obtêm energia e nutrientes ao alimentarem-se de hospedeiros vivos, ao decomporem matéria orgânica morta ou simplesmente ao viverem inofensivamente com outros organismos.

Os fungos podem parecer apenas um pequeno incómodo para o comum dos seres humanos saudáveis, mas este reino ataca os insectos e as plantas de formas horripilantes. Um tipo de fungo, por exemplo, começa a comer a parte traseira das cigarras e consegue manipular as suas asas para atrair parceiros, espalhando o fungo como uma infecção sexualmente transmissível.

O fungo em particular que inspirou o jogo The Last of Us chama-se “cordyceps – por vezes também chamado fungo da formiga zombie” – faz com que os insectos se abeirem das extremidades das plantas ou de ramos até que o fungo rebente para fora do seu corpo e liberte esporos.

Os humanos geralmente não têm encontros tão gráficos com fungos (falaremos mais tarde sobre LSD e cogumelos mágicos). A maioria dos fungos não infecta os humanos, porque não conseguem aguentar a nossa temperatura corporal elevada ou a acção do nosso sistema imunitário.

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Formigas afectadas pelo fungo Ophiocordyceps unilateralis que faz com que o fungo brote dos seus corpos para que liberte esporos David P. Hughes e Maj-Britt Pontoppidan

Estima-se que possam existir entre 1,5 e 5 milhões de espécies de fungos no mundo, mas apenas algumas centenas podem fazer-nos ficar doentes – sobretudo se forem pessoas imunodeprimidas, que não têm um sistema imunitário robusto para as combater.

Na primeira cena da série The Last of Us, o epidemiologista fictício Dr. Neuman desafia-nos a pensar nestes comportamentos dos fungos: e se um fungo, como o “fungo da formiga zombie, se pudesse adaptar a temperaturas mais quentes e propagar-se em pessoas aparentemente saudáveis? E começa o genérico com a música sinistra.

E se os fungos se adaptarem?

Há milénios que os fungos afectam plantas, répteis e outros organismos. O investigador infecciologista Arturo Casadevall acredita que, quando um asteróide gigante atingiu a Terra há 66 milhões de anos, foi o aparecimento de um aglomerado de fungos que contribuiu em parte para o declínio dos répteis e plantas.

O ambiente após a calamidade – com muita quantidade de vegetação em decomposição, muita escuridão e um arrefecimento global – pode ter favorecido o crescimento de fungos, o que ajudou a dizimar os animais de sangue frio, defende. Os pequenos mamíferos, capazes de regular a sua temperatura corporal, foram capazes de combater as infecções fúngicas de forma mais eficaz.

Nos últimos anos, Casadevall tem estado a investigar a forma como as alterações climáticas podem causar novas infecções fúngicas nos mamíferos, incluindo as pessoas.

Os fungos vão adaptar-se a climas mais quentes ao desenvolverem uma maior tolerância ao calor, observa Casadevall, que é também microbiólogo especializado em doenças fúngicas na Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg. Alguns fungos poderão começar a proliferar à temperatura do corpo humano e a causar novas doenças fúngicas que nunca vimos antes.

Alguns fungos podem adaptar-se ao alterarem a expressão de diferentes proteínas que lhes permitem resistir a temperaturas mais elevadas. Um fungo pode também vir a aumentar a sua quantidade de melanina, o que lhe permitiria resistir a climas mais quentes e secos, explica Hughes.

Ou se adapta ao clima em mudança, ou extingue-se, prossegue Hughes, que é professor de Segurança Alimentar Global na Universidade Penn State, na Pensilvânia (EUA).

Há novos fungos que já estão a aparecer em lugares inesperados. Um fungo chamado “Candida auris”, que causa infecções graves, incluindo na corrente sanguínea, apareceu em simultâneo em diferentes continentes. Desde então, chegou aos EUA, infectando muitos doentes com covid-19 internados nos hospitais. Certas estirpes deste fungo são também resistentes aos medicamentos, o que as torna mais difíceis de tratar.

Casadevall publicou um artigo em que compara a susceptibilidade térmica da Candida auris com as dos seus familiares” mais próximos, dando a entender que este poderia ser o primeiro exemplo de uma nova doença fúngica que surgiu por causa das alterações climáticas nos dias de hoje.

Fungos duros de roer

Os fungos, mesmo aqueles que não são resistentes aos medicamentos, são difíceis de tratar, explica a médica Julia Koehler. Isto, porque os humanos e os fungos partilham muitos genes, uma vez que evoluíram de um antepassado comum.

De facto, os fungos estão geneticamente mais próximos dos animais do que das plantas ou bactérias. Como resultado, um tratamento que teria como alvo um fungo no nosso corpo poderia também destruir as nossas próprias células.

É por isso que muitos medicamentos que se pensava serem antifúngicos úteis acabaram por ser retirados da equação, porque também são tóxicos para os humanos, adianta Koehler, uma especialista em doenças infecciosas pediátricas no Hospital Pediátrico de Boston, nos EUA.

Koehler apelou a que sejam disponibilizados mais fundos para a investigação de fungos, dizendo que é muito importante que haja um foco mais intenso na procura de melhores tratamentos para os fungos.

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Uma cena da série The Last of Us Liane Hentscher/HBO

Também não seria preciso muito para que um fungo proliferasse, considera Casadevall. Muitos fungos propagam-se através de correntes de ar e podem ser transportados por pessoas ou animais.

O fungo que provoca a febre-do-vale (coccidioidomicose), por exemplo, que causa problemas respiratórios, cresce no solo na Califórnia e no Sudoeste dos EUA. As pessoas podem ficar doentes só ao respirar a poeira que contém este fungo.

À medida que o clima aquece, alguns modelos feitos em computador projectam que a área susceptível à febre-do-vale poderá mais do que duplicar até ao final do século.

As boas notícias

Agora algumas boas notícias. Mesmo com todas estas preocupações legítimas sobre a adaptação dos fungos, assim como sobre o tratamento de doentes e a propagação, um domínio completo e violento dos fungos como acontece na série The Last of Us é pouco provável, disse Hughes.

Os criadores da série e do jogo traçam um cenário em que o “fungo da formiga zombie” entraria nos corpos humanos e controlaria os seus movimentos, como se fôssemos marionetas. Mas Hughes garante que esse fungo se aperfeiçoou para atacar insectos, não humanos.

Não é provável, porque os fungos evoluíram para controlar precisamente o comportamento das formigas, controlando o seu sistema motor neuronal, disse Hughes. Se entrarem no corpo dos humanos, não estarão evoluídos para conseguir ter esse controlo certeiro do nosso comportamento.

Isto não quer dizer que o fungo não nos possa afectar de outras formas, até porque muitos fungos afectam o nosso comportamento.

São os fungos que produzem o etanol da cerveja, o que nos pode deixar embriagados e... interferir com o nosso comportamento, explica Hughes. No século XIX, as parteiras costumavam administrar um fungo às grávidas para induzir as contracções e acelerar o parto. As drogas psicadélicas como cogumelos mágicos e LSD afectam o cérebro humano, distorcendo os nossos sentidos.

Alguns fungos até têm benefícios para os seres humanos. O “fungo da formiga zombie” faz parte, na verdade, da composição de suplementos de saúde e é utilizado em estudos para retardar o crescimento do cancro ocular. Há muitos mais fungos que vivem no nosso corpo de forma inofensiva e que passam até despercebidos.

Além disso, posta a questão a Hughes, este explica os humanos têm uma ameaça bem mais palpável pela frente, quando se trata de alterações climáticas: a alimentação.

Há alguns anos, Hughes cessou a sua investigação sobre o “fungo da formiga zombie” e fundou a PlantVillage, que ajuda os agricultores a enfrentar climas mais secos, pragas e outros perigos induzidos pelo clima nos seus campos agrícolas. Algum do seu trabalho centra-se precisamente em novos fungos que dizimam culturas inteiras.

Vemos muitos exemplos de plantas, animais ou microrganismos que se estão a adaptar ao aumento da temperatura, diz Hughes. “Não devemos estar à espera que os fungos que nos ajudam a cultivar alimentos sejam diferentes.

Exclusivo The Washington Post/PÚBLICO

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