A campanha sobre saúde mental da Vodafone e o avesso dos bons propósitos

Olhe-se para ela com cautela, já que, a par dos seus nobres propósitos, opera a mercantilização de um problema de saúde pública enquanto persistem condições que minam a saúde mental das pessoas.

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Antes de 2020, os problemas de saúde mental estavam já reconhecidos como uma questão de saúde pública, inclusive em Portugal, onde cerca de 23% da população vive com um problema de saúde mental. A pandemia covid-19 veio escurecer este cenário.

À própria doença e ao isolamento provocado pelos períodos de confinamento, juntaram-se o stress e a preocupação constantes, lutos inesperados, o aumento da violência doméstica ou a necessidade de adaptação súbita ao teletrabalho e ensino à distância, mas também a perda de rendimentos, o aumento das desigualdades e uma crise socioeconómica que lançou milhares para a precariedade, para o desemprego e para a pobreza. Estas circunstâncias conduziram a um aumento generalizado dos problemas de saúde mental: No primeiro ano da pandemia de covid-19, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25%.

Hoje, uma pandemia silenciosa afecta cerca de mil milhões de pessoas em todo o mundo, com um impacto desproporcional nas pessoas mais velhas, nas mulheres e nos jovens. Um relatório recente da OCDE revelou que a proporção de jovens com sintomas de depressão passou a ser pelo menos 50% maior do que a generalidade da população. Os jovens são, também, quem mais facilmente recorre a apoio especializado – mas nem sempre este está disponível. Persiste um subinvestimento histórico em saúde mental que não permite responder a um problema cuja solução é vital para a saúde global das comunidades e das pessoas.

Em Portugal, o país da OCDE com o mais elevado consumo de antidepressivos, as 5.532.708 embalagens vendidas no primeiro semestre de 2022 (mais 8.2% que em 2021) custaram 22.2 milhões de euros ao SNS — onde, na totalidade, trabalham pouco mais de mil psicólogos e psicólogas. Nos próximos dez anos, a depressão será a doença mais frequente no planeta e sobrecarregará os países mais do que qualquer outra.

Nunca, como agora, se falou tanto de saúde mental. E é inegável que a visibilidade extraordinária que adquiriu nos anos da pandemia tem contribuído para a diminuição gradual do estigma e para o aumento da literacia um ganho imenso, cuja importância não pode ser desvalorizada. A saúde mental foi introduzida na agenda mediática, foi assumida por figuras públicas, foi finalmente naturalizada: todos/as, a qualquer momento, podemos debater-nos com um problema de saúde mental.

É disto exemplo a recém-lançada campanha de Natal da Vodafone, onde um rapaz possivelmente deprimido recebe uma chamada de uma desconhecida, que acaba por arrancá-lo da sua tristeza. A campanha pretende, e bem, mostrar que falar ajuda e sensibilizar para a procura de apoio.

Captando o assunto do momento, a campanha apela à emoção, não só para educar o público, mas (e sobretudo) para vender, algo que a publicidade há muito descobriu. Olhe-se para ela com cautela, já que, a par dos seus nobres propósitos, opera a mercantilização de um problema de saúde pública, enquanto, nos bastidores, persistem condições que minam a saúde mental das pessoas – também na própria Vodafone.

Em Portugal, mais de cem mil pessoas trabalham em call centers – com maior concentração nas grandes operadoras de telecomunicações como a Vodafone, mas também na MEO/Altice, na NOS Comunicações e na Nowo – em regime de subcontratação, muitos com contratos a prazo em empresas de trabalho temporário e outsourcing, para preenchimento de postos de trabalho permanentes; a grande maioria encontra-se em situação de precariedade laboral há vários anos, com percurso por várias empresas de trabalho temporário e outsourcing.

Em Abril de 2021, por exemplo, os sindicatos denunciaram, uma vez mais, as condições de trabalho nos call centers destas empresas, reclamando melhores condições e vínculos de trabalho efectivos. Em Maio do mesmo ano, deslocaram-se ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, onde entregaram uma carta reivindicando melhores salários e condições de trabalho dignas. Paralelamente, vários estudos documentam os efeitos psicológicos negativos desta actividade.

Sem dúvida, é louvável que as empresas como a Vodafone assumam um papel na produção de literacia e na promoção da saúde mental. Mas não ignoremos a necessidade de transformar um mundo onde demasiadas circunstâncias levam, todos os dias, à sua deterioração. Contrariando a narrativa de que a saúde mental é algo pertencente ao indivíduo, como se impermeável ao seu contexto, as evidências científicas mostram claramente que a saúde mental depende de um conjunto de determinantes socioeconómicos – nomeadamente, o trabalho e a segurança laboral. Se uma planta começa a murchar, não a diagnosticamos com “síndrome da planta murcha” – antes mudamos as suas condições.

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