O luto em tempo de pandemia

Assistiremos, perante a pandemia de covid-19, a situações de luto adiado: familiares e amigos terão que se despedir de forma rápida e dar atenção imediata a outras urgências que a situação impõe. E a tendência para o isolamento que normalmente acompanha as situações de luto pode confundir-se com o isolamento imposto, o que poderá agravar os sentimentos de dor e de solidão.

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Kerri Shaver/Unsplash

O luto é uma resposta natural à perda. Tem uma dimensão adaptativa e deve conduzir à aceitação da perda ou à transformação da relação. Embora a morte nos toque a todos, permanece um tema paradoxalmente segregado. Mas, à luz da pandemia do novo coronavírus, o assunto está na ordem do dia: nas notícias diárias sobre as baixas registadas nos vários países e também em Portugal, nas estatísticas que vão sendo disponibilizadas e, sobretudo, na cabeça das pessoas.

É expectável que ocorram quadros de luto antecipatório. Este acontece quando alguém se encontra tão gravemente doente que a morte pode ser antecipada, em situações de doença respiratória grave em doentes em idade avançada e/ou no quadro de outras condições clínicas potencialmente agravantes. Antecipar a perda de um ente querido pode ser tão doloroso quanto a perda real, embora permita que a família se prepare para a despedida inevitável, procurando apoio de pessoas de referência (líderes espirituais, familiares e amigos) ou esclarecendo os desejos da pessoa no que concerne às questões do fim de vida.

Pelo contrário, em situação de perda súbita (que podem também ocorrer na actual situação), o processo de elaboração do luto torna-se mais complexo: a morte inesperada gera processos de luto difíceis e pode potenciar outros problemas psicológicos (tais como depressão). Assistiremos também a situações de luto adiado: familiares e amigos terão que se despedir de forma rápida e dar atenção imediata a outras urgências que a situação impõe. Por fim, a tendência para o isolamento que normalmente acompanha as situações de luto confunde-se agora com o isolamento imposto, que poderá agravar os sentimentos de dor e de solidão.

No que respeita ao momento da despedida, parte importante do processo de luto, este cumpre também uma função comunitária em que os participantes mostram apoio e solidariedade por uma circunstância que a todos tocará. Mas neste momento quaisquer aglomerações são desaconselhadas para evitar a disseminação da covid-19. A impossibilidade de cumprir o ritual do funeral pode complicar o processo de luto, constituindo um factor adicional de stress, raiva e angústia para os elementos da família (pela incapacidade de honrar os desejos do falecido ou de ter familiares e amigos significativos presentes) e limitando o apoio emocional disponível.

Logo após a primeira morte, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) divulgou um conjunto de normas sobre cuidados pós-morte por forma a evitar que os funerais das vítimas sejam focos de contaminação, como aconteceu noutros países. Estas incluem a pressão para a cremação, a proibição de abertura do caixão em caso de enterramento, a limitação de acesso ao funeral (apenas os familiares directos) ou a ausência de cortejo fúnebre ou celebração de missa. As normas para a realização dos funerais das vítimas da covid-19, embora tentem respeitar as práticas fúnebres, afectam de forma significativa a forma como estas cerimónias são organizadas.

Esta realidade introduz um novo tipo de tristeza: individual e comunitária. A própria comunidade tem que lidar com o significado da morte decorrente de uma pandemia e com as ilações, certas ou erradas, que daí decorrem. Estas mortes confrontam a comunidade com os seus receios e incertezas, com a ideia do fim e com pensamentos globais sobre o futuro. Adicionalmente, os sentimentos de culpa e raiva que muitas vezes acompanham a perda podem ser agravados, por exemplo, em situações em que exista suspeita de contágio ao falecido. A proibição da abertura do caixão, para lá de outros condicionalismos, é uma circunstância que pode potenciar quadros de luto patológico, que corresponde à fixação numa das fases do processo normal de luto. 

Num contexto em que, previsivelmente, ocorrerá um número elevado de mortes, devem ser consideradas variáveis que podem complicar o atrasar do normal processo de luto e tomadas algumas medidas preventivas simples, no sentido de aliviar o sofrimento individual e da comunidade. Seria importante que as funerárias, observando as recomendações oficiais e atendendo em simultâneo às necessidades das famílias, facilitassem a disponibilização de condições para transmissão do funeral em vídeo (por forma a possibilitar o acesso de familiares e amigos ao momento da despedida) e sugerissem apoio na realização de um serviço memorial em casa ou numa capela, numa data posterior.

Para os enlutados e as suas famílias, seguem-se alguns conselhos fundamentais:

  • Não tentem adiar o luto. Por vezes, os enlutados tentam suprimir as emoções ligadas ao luto, envolvendo-se em actividades ou tarefas na tentativa de não pensar no assunto. Aceite que o luto tem que ser vivido. Chorar é positivo: as lágrimas ajudam a expelir o stress acumulado, a “pôr tudo cá para fora”.
  • Não se isolem. Procurem o apoio de familiares e amigos. O luto é um processo difícil, mas precisa de ser vivido com a ajuda dos outros. Falar sobre o que sente não aumentará a tristeza, mas permitirá dividi-la com outros que também estão tristes. 
  • Respeitem o próprio tempo. Não esperem que a tristeza passe de repente. O luto é um processo longo e com várias fases. Informem-se sobre elas e percebam o que se está a passar convosco.
  • Respeitem as vossas emoções. O luto pode incluir muitos sentimentos: raiva, revolta, culpa, medo, impotência, ansiedade e até alívio (numa situação em que a pessoa, antes de morrer, estava em sofrimento). Aceitem as emoções, pois todas são legítimas numa situação de perda.
  • Procurem ânimo em tarefas que lhe tragam alegria. Mantenham as rotinas e actividades e não abdiquem do que vos dá prazer (cuidar das plantas, cozinhar, ver a série preferida).
  • Valorizem o auto-cuidado. Quando em luto ou a apoiar alguém que está em luto, acabamos por vezes por não cuidar da nossa saúde física e emocional. Aproveitar o tempo para cuidar de nós pode melhorar muito a capacidade de reagir à situação, especialmente a longo prazo.
  • Se considerarem que o sofrimento é tão perturbador que impede as actividades quotidianas, procurem a ajuda de um psicólogo.

O distanciamento social não deve corresponder a distanciamento emocional. O isolamento físico não deve corresponder a um isolamento existencial. Consultem as recomendações da Ordem dos Psicólogos Portugueses para lidar com o isolamento. O luto é mais uma dimensão a reinventar no actual contexto. Lembrem-se: não estão sozinhos. 

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