Aurora Carapinha, arquitecta paisagista: “É um disparate perdermos esta água toda que choveu”

Não há só uma solução para as cheias e o Plano de Drenagem de Lisboa não chega. Mais do que alterações climáticas, devíamos falar de um problema mais antigo como a gestão da paisagem.

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Algés: estabelecimentos alagados e com muita lama, após as inundações da última noite na zona de Lisboa MANUEL ALMEIDA/LUSA

A arquitecta paisagista Aurora Carapinha, discípula de Gonçalo Ribeiro Telles, que nos ensinou a pensar o fenómeno das cheias e a sua relação com a paisagem, explica que quanto mais água entrar no solo melhor, porque estamos a aproveitar o ciclo da água. Sozinho, o Plano Geral de Drenagem de Lisboa é "um disparate".

Porque é que a toponímia explica em parte as cheias?
O nome dos lugares é, muitas vezes, atribuído pelas potencialidades e as capacidades de cada lugar. Quando dizemos “Entrecampos”, em Lisboa, estamos a falar de uma zona que fica entre campos e têm uma determinada fisiografia. Quer dizer que se trata de uma zona baixa. “Sete Rios” parece-me óbvio — ali passam sete rios.

Na Avenida de Berna, por exemplo, passava a vala do Rego, por isso é que há ali o Hospital do Rego. Essa vala do Rego recebia todas as águas da encosta de São Sebastião da Pedreira e daquela zona.

O bairro da Amadora, onde as pessoas tiveram de ser evacuadas, chama-se “Mina de Água”. Em Torres Novas também houve cheias num sítio chamado “Riachos”.

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Aurora Carapinha. "Não se pode relacionar estas cheias com as alterações climáticas, mas com o tipo de clima em que vivemos e com o desordenamento desta paisagem resultante de uma gestão política errada" NUNO FERREIRA SANTOS

Em Oeiras há o Vale do Jamor.
O rio Jamor, que no seu primeiro terço se denomina Ribeira de Belas, adquire maior expressão a partir da Quinta Real de Queluz quando recebe a Ribeira de Carenque. Em toda a bacia hidrográfica desse rio têm que ser mantidas zonas de infiltração e de retenção da água para que não haja picos de cheia em determinadas alturas. Não quer dizer que tenhamos de deitar as casas todas abaixo, porque se formos retendo a água é mais inteligente do que deixar a água correr à solta.

Estas são zonas muito alagadiças que permitem acumulação. É o princípio da Física, a água corre de cima para baixo. Na SIC vi uma reportagem com um jornalista a comentar que por trás das suas costas passava um muro com uma ribeira, o que é incrível porque uma ribeira é uma zona baixa e nenhum muro pode cortar uma ribeira.

As ribeiras [em zonas urbanas] não podem ser cortadas. Não quer dizer que tenham de sofrer processos de renaturalização, mas temos de respeitar a escorrência da água dos pontos altos para os mais baixos.

É essa impermeabilização a montante das zonas de cheia que causa problemas?
Muitas vezes, a impermeabilização a montante impede a infiltração da água e a sua fixação no solo, tal como a impermeabilização destas zonas alagadiças. Basta ter mais áreas verdes em determinadas zonas, mais jardins, o que não quer dizer que se tirem todas as estradas ou vias. Durante muitos anos chamou-se a atenção para a necessidade de não impermeabilizar os logradouros da Baixa Pombalina, em Lisboa, que deixavam a água entrar no solo.

Quanto mais água entrar no solo melhor, porque estamos a usar os métodos do ciclo da água. É fazer com que a água não se perca, porque é um disparate perdermos esta água toda que choveu.

Como é que vê as obras do Plano Geral de Drenagem de Lisboa, que prevê a construção dos túneis Monsanto-Santa Apolónia e Chelas-Beato?
É um disparate porque os custos de fazer dois túneis com 5,5 metros de diâmetro e seis quilómetros de comprimento parecem muito elevados para a eficiência. Estamos a passar a água do ponto A para o ponto B e a deitá-la no rio rapidamente, quando precisamos dela, que é um recurso cada vez mais necessário.

É muito mais interessante promover a infiltração da água de algumas ribeiras, criando várias bacias de retenção, pequenos lagos artificiais, de maneira a que os pontos de enchente sejam retardados, para não acontecer o que vimos em Alcântara e na Avenida 24 de Julho.

Em algumas cidades no norte da Europa e até mesmo no Brasil esta água não é metida dentro de um cano para ser despejada num rio, vai sendo gerida a olhos vistos em canais abertos. Vai para lagoas, para um conjunto de situações em que pode vir a ser utilizada em momento de falta de água.

Não se pode igualmente relacionar estas cheias com o fenómeno das alterações climáticas, mas com o tipo de clima em que vivemos e com o desordenamento desta paisagem resultante de uma gestão política errada. Há conhecimentos que existem e que podiam ser utilizados e que não o são, porque há muitos interesses.

O exercício de engenharia do Plano de Drenagem de Lisboa é fantástico enquanto exercício, pode diminuir as inundações, mas não vai resolver o problema da falta de água. Se tirarmos partido da chuva que cai — guardá-la, armazená-la e infiltrá-la no solo — através de dispositivos que vários países usam, não estamos a perdê-la.

O presidente da Câmara, Carlos Moedas, falou esta quinta-feira num reservatório de 17 mil metros cúbicos.
Isso até pode ser interessante porque prevê a utilização da água para rega, por exemplo, mas em vez de planos de drenagem temos que fazer planos de gestão do ciclo da água e ter políticas de ordenamento que percebam que os territórios não podem aguentar uma construção infinita. Os recursos solos e água são fundamentais na gestão política urbanística.

Não há só uma solução, o plano de drenagem não chega. Estamos a usar métodos muito tecnológicos, que demonstram uma sabedoria enorme, mas pensemos: dois túneis com 5,5 metros de diâmetro a atravessar Lisboa? É um disparate, em custos energéticos, para resolver um problema que se poderia resolver possivelmente aliando outras medidas.

Entrevista alterada a 12 de Dezembro: esclarece a origem do Rio Jamor

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