Uma revisão a meio gás

Não se percebe como não se aproveita a oportunidade para blindar a Constituição contra tentações populistas que possam surgir em futuras conjunturas e queiram desmantelar o Estado de direito.

Passados 17 anos sobre a última revisão constitucional, surgiu agora a oportunidade política para se abrir um novo processo de revisão. Há 7 projectos, apresentados pelo PS, PSD, Chega, IL, BE, PCP e Livre. O resultado final vai depender da geometria imprevisível dos acordos e cálculos de vantagens políticas entre os dois maiores partidos, que juntos têm os 2/3 necessários para aprovar qualquer alteração. Esta é uma daquelas coisas que se sabe como começa, mas não se sabe como acaba.

Salta à vista a ausência de propostas sobre a organização e funcionamento do sistema de justiça nos projectos do PS e PSD. As estruturas basilares do edifício normativo da justiça – estatutos das magistraturas e dos conselhos superiores, recrutamento e qualificação dos magistrados e organização judiciária – vêm dos anos 80. Devia ser evidente que não é possível pensar o futuro a partir de um modelo concebido há 40 anos, para uma realidade política, social e económica ultrapassada. E depois dizem que o corporativismo das magistraturas não deixa reformar a justiça

Nas propostas dos outros partidos há ideias boas e más. É positivo, ao menos como princípio de discussão, querer acabar com as portas giratórias entre a justiça e a política (Chega), facilitar o acesso das pessoas mais pobres aos tribunais, elevar a celeridade e prioridade a princípios fundamentais da justiça e impedir a decisão de litígios em que se joga o interesse público nos tribunais arbitrais (PCP). As propostas para colocar os juízes em maioria no Conselho Superior da Magistratura (Chega e PCP) estão alinhadas com as recomendações do Conselho da Europa, mas passam ao lado da questão fundamental porque os problemas estruturais do governo das magistraturas vão muito mais fundo do que a sua composição.

De sinal contrário, há duas propostas da IL que parecem apelativas, mas teriam resultados nefastos se fossem aprovadas. Numa, pretende-se que os tribunais de segunda instância passem a ser integrados, não apenas por juízes, mas também por magistrados do Ministério Público e juristas de mérito. Se isso viesse a acontecer, não havia de demorar muito tempo para que os juízes de carreira, com um lastro de 30 ou 40 anos de experiência e independência, fossem convenientemente “corridos” dos tribunais onde se decidem muitos dos recursos da criminalidade económico-financeira. Noutra, pretende-se a criação de um conselho superior das magistraturas, com poderes de gestão e disciplina conjunta de juízes e procuradores do Ministério Público. Esta solução não se adequaria aos diferentes estatutos funcionais e processuais das magistraturas, que exigem uma separação clara entre o terceiro imparcial que julga e a parte que litiga (entendida parte no sentido de entidade representante de um dos interesses em confronto). Colocar as duas magistraturas sob a mesma autoridade de gestão e disciplina redundaria num desequilíbrio excessivo em desfavor da defesa no processo penal e das partes opostas nos outros processos em que o Ministério Público intervém.

Do lado das omissões gritantes, não se percebe como não se aproveita a oportunidade para blindar a Constituição contra quaisquer tentações populistas que possam surgir em futuras conjunturas político-partidárias e queiram desmantelar o Estado de direito. Não se trata de ver o diabo onde ele não existe. Todos sabemos o que aconteceu na Hungria e na Polónia e noutros países em que as chamadas democracias iliberais chegaram ao poder. Esses perigos previnem-se com o reforço das garantias de independência e eficiência na constituição judiciária. É imperioso discutir a densificação do estatuto de independência dos juízes e dos tribunais e de autonomia do Ministério Público, a constitucionalização do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a atribuição da competência para legislar sobre os estatutos das magistraturas e dos conselhos superiores à reserva absoluta da Assembleia da República, com maioria qualificada, e a criação de mecanismos de garantia acrescida de integridade, responsabilidade, transparência e fiscalização democrática do poder judicial.

Se não arrumamos agora a casa, antecipando problemas que podem surgir, depois, quando for tarde demais, servirá de pouco olhar para trás e lamentar o que não se fez.

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