Pedrógão Grande: Ministério Público recorre da absolvição de sete arguidos

Ministério Público considera que a possibilidade de salvamento das vítimas mortais era real e afirma que o depoimento de 74 testemunhas foi omitido.

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Incêndio de Pedrógão Grande provocou 63 mortes Adriano Miranda

O Ministério Público (MP) recorreu da absolvição de sete arguidos do processo dos incêndios de Pedrógão Grande, incluindo do comandante dos bombeiros Augusto Arnaut e dos ex-presidente e vice-presidente da Câmara, Valdemar Alves e José Graça, respectivamente.

De acordo com o recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra a que Lusa teve acesso este sábado, o MP recorreu ainda da absolvição da então responsável pelo Gabinete Florestal deste município, Margarida Gonçalves, e dos três funcionários da Ascendi (José Revés, Ugo Berardinelli e Rogério Mota).

Mas não contestou a absolvição dos funcionários da antiga EDP Distribuição (actual E-REDES) José Geria e Casimiro Pedro, do ex-presidente da Câmara de Castanheira de Pera Fernando Lopes e do actual presidente da Câmara de Figueiró dos Vinhos, Jorge Abreu.

Em sede de primeira instância, o Tribunal Judicial de Leiria absolveu os 11 arguidos num julgamento em que estavam em causa crimes de homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência, alguns dos quais graves, ocorridos nos incêndios de Pedrógão Grande, em Junho de 2017. No processo, o MP contabilizou 63 mortos e 44 feridos requereram procedimento criminal.

A maioria das vítimas mortais foi encontrada na Estrada Nacional 236-1, que liga Castanheira de Pêra a Figueiró dos Vinhos. A subconcessão rodoviária do Pinhal Interior, que integrava esta via, estava adjudicada à Ascendi Pinhal Interior, à qual cabia proceder à gestão de combustível.

No recurso agora conhecido, de 467 páginas, o Ministério Público sustenta, entre outros aspectos, que Augusto Arnaut não pediu atempadamente o instrumento Arome (previsão meteorológica específica para um local) e não informou cabalmente o Comando Distrital de Operações de Socorro de Leiria sobre a evolução do incêndio, pelo que deve ser condenado pela totalidade dos crimes que lhe foram imputados (63 crimes de homicídio e 44 de ofensa à integridade física, alguns dos quais grave, e todos por negligência).

Quanto aos funcionários da Ascendi, pretende a condenação pela “totalidade dos factos e pela imputação da totalidade dos crimes relativos às vítimas mortais e feridos” que lhe estavam imputados no despacho de acusação, nesta parte também secundado pelo juiz de instrução criminal (34 crimes de homicídio e sete de ofensa à integridade física, cinco deles graves, todos por negligência).

Por fim, quanto a Valdemar Alves, José Graça e Margarida Gonçalves, pede a sua condenação “somente pela omissão de deveres de gestão da faixa de combustível” em quatro vias, que terão provocado a morte de seis pessoas.

Salvamento era possível

No recurso, o MP considera que a possibilidade de salvamento das vítimas era real. “A possibilidade de salvamento das vítimas, caso os deveres tivessem sido cumpridos, não era assim teórica, mas real – como se atesta, não nos cansamos de realçar, pela existência de sobreviventes, apesar das omissões dos arguidos”, lê-se no documento.

“O tribunal parece aceitar que um hipotético cumprimento dos deveres jurídicos pelos arguidos não exerceria qualquer influência sobre o resultado – mas tal não se verificou, até pela circunstância de haver sobreviventes”. “Caso contrário, estar-se-ia a admitir que a violação dos deveres de cuidado era indiferente e completamente inútil para a sorte das vítimas” e que tal “equivaleria a renunciar às normas de cuidado precisamente num evento em que o cumprimento dos deveres de cuidado eram mais prementes, ou seja, no decurso de um incêndio com as características descritas”, escreve a procuradora da República Ana Mexia.

“Se as vítimas se viram “encurraladas” pelo fogo, admitir que o cumprimento das normas de cuidado era indiferente para o salvamento delas é admitir factos hipotéticos excludentes da própria ilicitude, é adoptar um entendimento segundo o qual as vítimas não mereceriam mais a protecção jurídico-penal nas situações em que foram surpreendidas pelo fogo”, defende.

Omitido depoimento de testemunhas

O Ministério Público considera ainda que foi omitido o depoimento de 74 testemunhas, e por isso pede a nulidade da deliberação. “Na sua motivação/fundamentação, o acórdão é totalmente omisso quanto à indicação e, por conseguinte, exame crítico do depoimento destas testemunhas”.

“As testemunhas (...), para além dos ferimentos que sofreram, descreveram, também, o estado da vegetação junto das vias, a dinâmica dos eventos daquele dia e as responsabilidades funcionais que incumbiam aos arguidos, não se alcançando porque é que os seus depoimentos não foram indicados na parte da fundamentação do douto acórdão, nem mereceram uma análise crítica (...), pese embora a factualidade julgada como provada a elas respeitante enquanto vítimas”, observa a procuradora.

Por outro lado, contesta a “omissão da valoração e análise crítica” do depoimento do professor Domingos Xavier Viegas, que coordenou o relatório “O complexo de incêndios de Pedrógão Grande e concelhos limítrofes, iniciado a 17 de Junho de 2017”, do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais.

“Constata-se ainda que, na motivação do acórdão, que o tribunal, para fundamentar a sua convicção, alude genericamente a depoimentos prestados por testemunhas, sem que as identifique sequer, ou sem que indique a sua razão de ciência e sem que faça a devida apreciação crítica”, adianta.

Os incêndios de Pedrógão Grande deflagraram na tarde de 17 de Junho de 2017. Segundo o despacho de acusação, os fogos de Escalos Fundeiros e Regadas foram desencadeados por descargas eléctricas de causa não apurada com origem na linha de média tensão Lousã-Pedrógão, da responsabilidade da antiga EDP Distribuição, em troços junto aos quais os terrenos estavam desprovidos de faixa de protecção e onde não tinha sido efectuada a gestão de combustível.

Estes dois incêndios acabaram por se juntar, ao final do dia, num processo designado de “encontro de frentes”, que conduz a um mecanismo de comportamento “extremo de fogo”, e unificado, progrediu “com grande rapidez e intensidade”, chegando à EN 236-1 e a outros locais de Castanheira de Pêra, Figueiró dos Vinhos e Pedrógão Grande, os concelhos mais fustigados.

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