O racismo e o antirracismo não são extremos opostos que se tocam

Só mesmo numa sociedade com um passado colonial tão próximo e arreigado e um lusotropicalismo tão incorporado se pode conceber combater o racismo sem o movimento antirracista.

Não entrarei numa discussão sobre o que terá levado o Ministério Público e o juiz Carlos Alexandre a acompanhar a queixa por difamação de Mário Machado, conhecido por um trajeto de violência reiterada e até hoje ativamente envolvido em organizações assumidamente racistas e xenófobas. Tão-pouco irei deter-me a demonstrar que o post de Mamadou Ba que serve de base a essa queixa – em que diz que Mário Machado é uma “das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro” – em momento algum lhe chama assassino, ou alongar-me a discutir a diferença entre autoria moral e material. Nem mesmo procurarei explicar que o que parece mover a acusação de Mário Machado é uma ação política de ataque ao antirracismo e de marketing à extrema-direita e ao próprio, mobilizando o sistema judicial para obter visibilidade e legitimação.

Quero antes discutir como este caso é ilustrativo da forma como as nossas instituições e elites, depois de décadas de negação e forçadas pelos movimentos sociais e instituições internacionais, readaptaram a velha narrativa sobre o racismo, servindo-a como nova. Não sendo já possível a negação pura e dura da sua existência (embora ainda muitos aí continuem), adotaram um discurso que, no mesmo passo que reconhece a existência do racismo, o equaliza ao antirracismo, como extremos opostos que se tocam. Como se fosse coisa irrelevante o facto de uns representarem forças antidemocráticas e violentas e outros forças que lutam por uma sociedade sem discriminação. O facto de o sistema judicial tomar como concebível a queixa de Mário Machado – uma das pessoas mais conhecidas pelo posicionamento discriminatório na sociedade portuguesa – e considerar plausível a imputação de culpa a Mamadou Ba, um militante antirracista destacado, tem como resultado político a consolidação da narrativa dos polos opostos através, por um lado da marginalização ou até mesmo criminalização do antirracismo e, por outro da normalização do racismo.

António Costa, o primeiro-ministro que lidera o Governo que cria o primeiro plano de combate ao racismo, assim como os grupos de trabalho sobre os dados étnico-raciais nos Censos e sobre a prevenção e o combate ao racismo, para os quais Mamadou Ba foi convidado, é o mesmo que diz que “nem André Ventura nem Mamadou Ba representam aquilo que é o sentimento da generalidade do país, felizmente”, e que, no debate sobre a descolonização da memória, afirma que há uma “revisão autoflageladora da nossa História” que se arrisca a produzir “uma fratura perigosa para a nossa identidade nacional” (março de 2021). Por essa altura ganhava força uma petição, claramente racista, que exigia a expulsão de Mamadou Ba (fevereiro de 2021) e que poucos meses antes o líder do partido Chega tinha, mais uma vez, dito para Joacine Katar Moreira “voltar para a sua terra” (janeiro e novembro de 2020). Como bem afirmou a ex-deputada, o Parlamento português, ao invés de uma condenação expressiva, preferiu ficar-se por palavras de circunstância para não “dar visibilidade” a André Ventura, normalizando o discurso racista na Assembleia da República e, deste modo, na sociedade portuguesa.

O contraste é evidente face ao caso recente no Parlamento francês, em que um deputado de extrema-direita, Grégoire de Fournas, mandou o deputado Carlos Martens Bilongo “para a sua terra” o que resultou numa decisão dos deputados, por maioria, em suspendê-lo por duas semanas. Contudo, não nos esqueçamos também de que esta reação é pouco mais do que uma admoestação. Ele, aliás, eles permanecem deputados em repúblicas cujas Constituições defendem o princípio da não discriminação.

Esta equalização entre racismo e antirracismo está também presente na forma como o diretor nacional da PSP, Manuel Magina da Silva, num colóquio sobre o Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança, promovido pelo IGAI, em 2020, diz que o que está em causa é a polarização social, isto é, de um lado teríamos os movimentos antirracistas e do outro movimentos de extrema-direita, ambos igualmente nefastos. Só mesmo numa sociedade com um passado colonial tão próximo e arreigado e um lusotropicalismo tão incorporado se pode conceber combater o racismo sem o movimento antirracista, aliás, se pode eleger o antirracismo como o “extremo oposto” do racismo, que deve igualmente ser combatido. Olhando para a História, apercebemo-nos de que os avanços que se fizeram no plano do combate ao racismo neste país são resultado de anos de luta do movimento antirracista e de pressões internacionais.

Foi no rescaldo do assassínio de Alcindo Monteiro (1995) e do avolumar do racismo antinegro, anticigano e da xenofobia que, em 1996, o Movimento SOS Racismo e a Associação Portuguesa dos Direitos do Cidadão apresentaram uma petição para que existisse uma lei de combate ao racismo em Portugal. Depois da petição continuariam a pressionar a Assembleia da República para que a lei fosse criada, o que viria a acontecer três anos depois (1999). Veja-se que volvidas mais de duas décadas de democracia não existiam ainda instrumentos legais específicos para operacionalizar o princípio da não discriminação racial em Portugal.

A criação da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), que era uma decorrência da nova lei e indispensável para a sua aplicação, haveria de demorar dois anos e meio (2001), para pouco tempo depois ser suspensa. Só retomaria os trabalhos em 2003, após pressão de várias organizações antirracistas e, curiosamente, de uma queixa por difamação apresentado pelo alto-comissário das Migrações, Padre Vaz Pinto, contra um dirigente do SOS Racismo, José Falcão. Os contornos que a lei e a CICDR vieram a assumir seriam desde cedo criticados pelo movimento antirracista, fosse pela falta de independência e recursos próprios do organismo, fosse pelo caráter restrito da lei (no entendimento do que é incitamento à violência, ódio, discriminação e intencionalidade; na moldura penal) e pelos sinais de evidente inoperância, como o ainda hoje residual número de condenações e elevadíssima percentagem de arquivamentos.

Foi também a partir da mobilização antirracista contra a violência policial, em Portugal e a nível internacional, que as instituições do Estado se viram forçadas a criar medidas de combate ao racismo, como o Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança (IGAI). Tenho várias críticas a esse plano, mas o que quero aqui dizer é que não se teria movido uma palha sem as mobilizações em torno do caso da esquadra de Alfragide (2015), da família Coxi no Bairro do Jamaica (2019), de Cláudia Simões (2020), da morte de Ihor Homenyuk (2020), entre outras. Foram essas mobilizações, assim como aquelas em torno de outros casos de violência racista, do acesso à nacionalidade, da descolonização do currículo, da memória e das artes, do feminismo negro e interseccionalidade, assim como da recolha de dados étnico-raciais, que pressionaram o Estado português a criar, apesar de vários pontos críticos, o primeiro plano de combate ao racismo multissectorial, em Portugal.

Sem o movimento antirracista e, no caso que aqui interessa, sem figuras como Mamadou Ba ou o SOS Racismo, as instituições e elites portuguesas não teriam dado, nem darão, um único passo para reparar uma história iníqua e uma fratura social inaceitável em democracia. Elas sabem disso. Mas preferem sedimentar o discurso de que o racismo e antirracismo são extremos opostos que se tocam, porque sem essa última bengala negacionista restar-lhes-ia confrontar verdadeiramente o racismo.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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