No Brasil, o evangélico vota em quem?

Completamente contrário aos ensinamentos de Jesus, Bolsonaro é o avesso de Cristo quando ironiza as 680 mil mortes causadas pela covid-19, quando se diz a favor da tortura, quando ataca a dignidade do povo pobre e traz a fome de volta.

Foto
Reuters/MARIANA GREIF

Se um dia afirmaram que o Estado é laico, hoje sabemos que o laicismo na política brasileira é como o monstro do lago Ness: a maior lenda urbana que já nos contaram. O embate religioso no Brasil apossa-se cada vez mais da política, com a bancada evangélica representando 20% do Congresso e os candidatos para Presidência da República, Lula e Bolsonaro, caçando voto do eleitorado evangélico. Isto acontece porque direccionar-se para o público evangélico não é só sobre aproximar-se de uma comunidade religiosa, é sobre comunicar com o Brasil de hoje: em 2020, 31% da população declarou-se evangélica.

O problema não é a necessidade dessa comunicação nas campanhas eleitorais, mas ver a encenação de um teatro trágico-cómico, no qual o público bíblico, levando a sério o papel de ovelhas que precisam de um pastor para guiar o rebanho, acredita num discurso que já se apresentou totalmente ao contrário na prática: Bolsonaro é o maior exemplo oposto às ideologias cristãs que a política brasileira já presenciou.

Com a necessidade de voltar a algumas etapas do debate para conseguir explicar o óbvio, chegamos ao ponto de o ateu ou agnóstico ter que avisar para o perigo e a hipocrisia da reeleição de um anticristo.

Completamente contrário aos ensinamentos de Jesus, Bolsonaro é o avesso de Cristo quando ironiza as 680 mil mortes causadas pela covid-19, quando se diz a favor da tortura, quando ataca a dignidade do povo pobre e traz a fome de volta - são 33 milhões de brasileiros em estado de fome, 14 milhões a mais que em 2020. Quando insiste no direito ao armamento, no incentivo de fuzilar a “petralhada” (termo pejorativo para referir militantes do Partido dos Trabalhadores), em ter como símbolo político o gesto de arma com as mãos. Anticristo e anticristão ao apresentar-se como misógino, racista, homofóbico e xenófobo. Bolsonaro não ama ao próximo, nem ama a Deus: longe de todos os mandamentos e salmos, só se idolatra a si mesmo quando incorpora um “mito” e se reveste de herói enviado por Cristo.

O que muitos se esquecem é que “mito” em português também significa mentira (como o documentário Quebrando Mitos tão bem sintetizou) e o fanatismo por um líder e a ilusão da busca por um salvador da pátria cega quem defende o indefensável. A ironia da dúvida ou da certeza do eleitorado evangélico votar Bolsonaro ultrapassa as directrizes espirituais porque no plano real todos os efeitos são concretos e visíveis. O actual Governo foi totalmente desastroso para a comunidade evangélica, tendo em vista que esta é composta maioritariamente por pessoas pobres, mulheres, negros e/ou pardos. Governando somente para os militares, agro-exportadores e empresários evangélicos, Jair, em nada Messias, despreza toda vida humana utilizando o nome de Cristo.

A ideia de Bolsonaro é transformar as eleições numa guerra religiosa e, embora a legislação brasileira proíba propagandas políticas dentro de espaços de culto, a sua aliança com pastores e empresários - porque bem sabemos que nem só de dízimo vivem os maiores nomes da igreja evangélica brasileira - promove a influência da massa evangélica para votar nele.

Com vídeos e denúncias de pastores pressionando os seus fiéis para votar no candidato (dito) evangélico, o que esses pastores ignoram e que o eleitorado desconhece é que a trajectória religiosa de Bolsonaro é em prol de uma política suja. Baptizado no Rio Jordão em 2016 pelo pastor Everaldo, preso em 2020 acusado de corrupção e lavagem de dinheiro durante a pandemia de covid-19, o caminho político-religioso de Bolsonaro continuou com controvérsias e polémicas. Um exemplo é quando o seu ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, foi preso pelo esquema de libertação de recursos da pasta com a intermediação de pastores evangélicos. Bolsonaro sabia do esquema.

E por falar em esquemas, o argumento que mais se escuta entre os evangélicos pró Bolsonaro, os anti-PT e também entre aqueles que não estão muito a par da política brasileira - sobretudo aqui em Portugal, onde constantemente escuto que essas eleições são para decidir entre um louco e um bandido -, é de que Lula é corrupto e já foi preso. De facto, preso pelo caso do triplex de Guarujá, processo que foi anulado e Lula absolvido. E, de facto, foi no seu Governo que o escândalo político Mensalão veio à tona. Mas esse argumento esvai-se quando Bolsonaro, também preso em 1986 e solto, criou em 2020, num acordo com o Congresso Nacional, o “orçamento secreto”, que destina uma parte significativa da verba federal para ser administrada por deputados e senadores - com menos prestações de contas, menos transparência e muito mais vulnerável a esquemas de corrupção.

Tanto o Mensalão quanto o “orçamento secreto” são esquemas que envolvem compra de votos no Congresso por apoio parlamentar. No primeiro caso, durante quatro anos, o Mensalão teve o desvio de 101 milhões de reais do dinheiro público. O “orçamento secreto”, por outro lado, atingiu 53 mil milhões em dois anos. Tudo indica que o “orçamento secreto” se tornará o maior dos escândalos políticos do Brasil. Em termos de pessoa física, de um lado Lula foi acusado de ter ganho dois imóveis de empreiteiras - com o processo posteriormente anulado. Do outro, Bolsonaro e sua família compram 107 imóveis, 51 deles com dinheiro vivo. Com dinheiro vivo.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários