Há Corpos e Corpos

Volto às crónicas no PÚBLICO exatamente no dia em que faz um ano da morte de Danijoy Pontes e de Daniel Rodrigues, no Estabelecimento Prisional de Lisboa.

Tinha pensado em regressar das férias com uma crónica tipo rapsódia sobre as continuidades coloniais no mês de agosto. Do caso das piscinas de Santarém, em que responsáveis e polícia expulsam pessoas muçulmanas por estas se banharem vestidas, às declarações do chefe da missão da embaixada portuguesa no Qatar, que disse ser “natural” que quem tem “mais melanina na pele” tem “mais capacidade de persistência nessas temperaturas"; do espancamento de um cidadão negro no Bairro Alto (Lisboa), à negligência no Hospital de Santa Maria perante a vida de Ibrahima — há corpos que se interditam, que se expõem, que se espancam, que se esquecem.

Volto às crónicas no PÚBLICO exatamente no dia em que faz um ano da morte de Danijoy Pontes e de Daniel Rodrigues, no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Sobre as causas da sua morte, assim como a de Miguel Cesteiro, no Estabelecimento Prisional de Alcoentre, a 10 de janeiro de 2022, pouco ou nada se avançou e é por isso que várias pessoas voltam à rua este sábado, às 16h30, no Rossio (Lisboa), com a manifestação “Entraram Vivos, Saíram Mortos”.

Em março já tinha escrito sobre as mortes de Daniel, Danijoy e Miguel, o racismo e a violência do Estado nas prisões portuguesas. Já havia falado do caráter inédito da mobilização política que se foi organizando, em que famílias negras, ciganas e brancas pobres se juntaram, e em que a questão racial não foi diluída na de classe, nem se sacrificou o caráter estrutural do problema —​ seja num entendimento mais reformista, seja na linha do abolicionismo penal —​ pela particularidade de cada caso.

Vale a pena lembrar: as prisões portuguesas apresentam taxas de encarceramento (geral e feminina), de sobrelotação, de mortalidade e suicídio bem acima da média europeia. Repito: “Em 5 anos, ocorreram 303 mortes nas prisões portuguesas, das quais 66 foram dadas como suicídio e apenas 6 investigadas pela Polícia Judiciária”. Portugal é o 4.º país mais seguro do mundo, mas apresenta o triplo da duração média das penas a nível europeu e os relatórios internacionais demonstram as más condições, abuso e discricionariedade dentro das prisões portuguesas.

Movimentos como o Defund the Police e a carta aberta “Ir à raiz: Mais Políticas Sociais, Menos Violência Policial” têm reivindicado que os recursos adjudicados às forças de segurança sejam reconduzidos para políticas sociais. Em termos relativos, no interior das prisões portuguesas, há sete vezes mais pessoas que não sabem ler e escrever; há 10 vezes mais pessoas de nacionalidade dos PALOP do que na restante sociedade portuguesa.

Olho para os números mais uma vez, confiro, retifico, lembro-me de tanta gente e indigno-me: como pode um alarme soar tão alto e nenhuma instituição lhe fazer caso? A prisão cumpre o seu papel de fazer desaparecer pessoas, processa e cria “corpos dispensáveis”. É duro que eu diga isto, sobretudo, para a Alice Santos, a Luísa Santos, o Joel Cesteiro e tantas outras pessoas que viram e veem os seus familiares “desaparecer” na prisão, mortos ou, mesmo que vivos, psiquicamente arruinados, por tanta “solitária”, sobremedicalização, violência e corte de perspetiva. Alguém acredita que a prisão reabilita e que é justa?

Olho para o jornal e vejo o coração de D. Pedro preservado em formol. Vai ser levado, de empréstimo —​ a pedido de Bolsonaro —​ para o bicentenário da independência do Brasil, mesmo que simbolize a continuidade colonial no pós-independência. Bolsonaro convoca esse passado, as origens da branquitude brasileira, porque a sua necropolítica se alimenta dele. Marcelo Rebelo de Sousa junta-se ao ritual, afinal, D. Pedro I é o “nosso” D. Pedro IV. 1822 não libertou os milhões de pessoas negras e indígenas do Brasil.

Há corpos que são nossos, há corpos que serão sempre de “outros”. Desses, a ter que os preservar, será para dissecar e arquivar, sem rito de inumação, sem comoção, como os crânios de 35 pessoas timorenses guardados no departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra e que Zia Soares reclamou na recente peça Fanun Ruin; ou como os corpos de dezenas de pessoas escravizadas entre os séculos XV e XVI, armazenados num sótão em Coimbra, depois de séculos sepultados numa espécie de vala-comum, em Lagos; o maior cemitério de pessoas escravizadas da Europa foi, entretanto, transformado em parque de estacionamento e campo de minigolfe.

A DJASS - Associação de Afrodescendentes, com uma equipa de investigadores da Universidade de Califórnia Santa Cruz, encontra-se a desenvolver o projeto “Histórias de Vida dos Escravizados” para reconstruir as histórias de vida individuais dessas pessoas, para restituir-lhes a dignidade que, enquanto vivas e mortas, não lhes foi concedida.

Negras, Pobres e Roma/Ciganas, pessoas como Daniel, Danijoy e Miguel, (des)aparecem mortas na prisão, o arquivamento interno dos seus casos é célere, escusam-se longas investigações, demora-se o acesso aos corpos pelas suas famílias, tardam os relatórios das autópsias. Na morte os corpos carregam o mesmo “valor” que lhes foi concedido em vida.


A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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