Não ligamos nenhuma às garrafas de grande formato

Uma produtora irreverente, um restaurante fora da caixa e uma garrafa de 15 litros juntam-se e são um belo pretexto para falarmos de um assunto que não é levado a sério em Portugal – vinho em garrafas magnum e outros grandes formatos.

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A enóloga e produtora Diana Silva esteve no JNcQuoi, em Lisboa, para a abertura de uma garrafa de 15 litros do seu branco Ilha Verdelho. Daniel Rocha/PUBLICO

Há dias em que a sorte faz das suas. Por causa de um artigo publicado no Terroir sobre um novo produtor da Madeira, ligamos à madeirense Diana Silva para tirar uma dúvida sobre quantitativos de produção de uva. A conversa ainda nem tinha arrancado quando a produtora sugeriu que se aprofundasse o assunto no dia em que a cerimónia da Big Bottle no restaurante JNcQuoi fosse com a garrafa de 15 litros do seu Ilha Verdelho de 2019. Já sabemos que, entre portugueses, qualquer assunto justifica cientificamente um almoço. Quando esses portugueses são ilhéus, o caso agrava-se. De maneira que lá fomos ver a coreografia da abertura da garrafa nabucodonosor na Avenida da Liberdade.

Diana Silva tinha 33 anos quando, em 2017, provocou um pequeno sismo do mundo do vinho da Madeira ao criar uma linha de vinhos feitos a partir de Tinta Negra, que é, por oposição às nobres castas Verdelho, Malvasia, Sercial, Boal e Terrantez, uma espécie de patinho feito da viticultura madeirense. Sendo muito produtiva e abundante, é usada para a produção de vinho Madeira de entrada de gama.

Na altura, quando Diana insinuou que ia fazer DOP Madeirense com Tinta Negra, houve quem pensasse que teria perdido o juízo (a família e o próprio enólogo). Ainda por cima, deu-lhe para, além de vinho tinto e rosé, fazer um blanc de noirs de Tinta Negra – coisa nunca vista. Como é aquela mulher que ganha força à medida que toda a gente lhe aponta erros imaginários, remou contra todos e a marca nasceu. Como estamos em Portugal, não durou muito tempo até aparecer outro vinho de Tinta Negra no mercado. Ainda bem.

Por altos e baixos, o projecto foi andando, com a jovem madeirense a investir todo o dinheiro que juntava enquanto trabalhava numa empresa de distribuição de vinhos e enquanto professora numa universidade. Em breve, surgirá um tinto de Tinta Negra estagiado numa barrica especial que vai dar que falar, mas hoje é o seu Verdelho que merece destaque.

A cenografia da abertura da garrafa

À parte ser conhecido como o restaurante dos ricos, o JNcQuoi destaca-se por dois aspectos: serve comida realmente portuguesa e muito bem feita, e faz do vinho um assunto sério, quer na selecção das referências, quer no serviço em si. O Big Bottle Day é apenas um exemplo. Desde 2019, só a pandemia impediu que todas as sextas-feiras do ano fossem dia de abertura de uma garrafa de grande formato. Conta Ricardo Morais, o wine director que gere uma equipa de 11 escanções, “Já devemos ter aberto umas 180 garrafas de diferentes formatos, volumes entre os 3 e os 15 litros, sendo que o ideal, por questões de serviço, é não ultrapassarem os 12 litros”.

Estas garrafas servem, naturalmente, para a venda de vinho a copo. E aqui a elasticidade de preços é infinita. Se um copo do Ilha Verdelho 2019 custava 15 euros, um copo de Masseto (o famoso vinho toscano feito com Merlot e que costuma ser apelidado de “Petrus italiano”) foi vendido a 255 euros o copo...

Os clientes do JNcQuoi aderem facilmente ao evento por causa da cenografia que se cria à sua volta. Registam a abertura da garrafa, tiram fotografias ao lado da garrafa, assinam o rótulo e ficam satisfeitos porque provam vinhos de marcas que nem sempre estão acessíveis nas garrafeiras. E, estando, custam muito mais do que o preço que pagam aqui pelo copo.

A equipa do serviço é que se vê atrapalhada, porque andar pela sala com garrafas deste tamanho (subindo e descendo escadas para as três áreas de restauração) e a servir directamente para o copo é coisa que requer frequência regular de ginásio.

Que diferença faz o tamanho da garrafa?

Questões cénicas à parte, a realidade é esta: o vinho guardado em garrafas de grande formato tem uma evolução mais tranquila e lenta, pelo que se mantém com mais jovialidade e complexidade quando comparado com o vinho da mesma colheita numa garrafa de formato standard. De resto, a forma mais didáctica de se perceber isso é abrir uma determinada colheita em 0,75l e, ao mesmo tempo, uma garrafa magnum (1,5 l) da mesma colheita e comparar os vinhos. Serão sempre diferentes. Ora, se toda gente concordará que o vinho da magnum estará melhor, imagine-se se estivermos perante garrafas com 6 litros (jeroboam) ou 12 litros (salomão). O llha Verdelho de 2019 nesta garrafa de 15 litros (nabucodonosor) estava com uma frescura impressionante (todo ele no perfil dos minerais), salino na boca e com uma acidez pujante. Do nosso ponto de vista, ainda está novo para ser apreciado na sua plenitude, mas, enfim, já que o abriram, não iríamos armar-nos em esquisitos.

É evidente que a abertura de garrafas de grande formato é coisa que só acontece em momentos muito especiais, pelo que não se imagina que seja um negócio por cá, num país que, de resto, gosta de usar estes formatos como elementos de decoração na entrada dos restaurantes (Deus lhes perdoe), mas isso não devia impedir uma maior oferta de vinhos em formatos intermédios, entre a magnum e a double magnum, por exemplo.

É que se toda a gente está de acordo com a evolução qualitativa do vinho e se nós, portugueses, fazemos das idas em grupo de amigos aos restaurantes um desporto nacional, haveria maior racionalidade em abrir esses formatos médios do que várias garrafas de 0,75l. A festa fica mais bonita e o vinho dá ainda mais conversa.

Sempre que colocamos esta questão aos produtores e aos responsáveis da restauração nasce uma ribeira de obstáculos. Que não temos tradição, que ninguém liga a isso, que tal implica uma logística de serviço tremenda, que as garrafas são mais caras e têm de vir de Itália, que o vidro está pela hora da morte (o que é verdade), que rolhar e rotular dá uma trabalheira porque tudo é feito à mão, que arrefecer garrafas de brancos é uma ginástica dos diabos, que o mundo já está demasiado complicado, que, enfim, mais vale não inventar e deixar tudo como está.

A oferta de garrafas por parte dos produtores portugueses é tão escassa que Ricardo Morais tem de visitar vários produtores e propor-lhes que engarrafem em grandes volumes alguns dos seus vinhos icónicos. “Vamos abrir numa das sextas-feiras uma garrafa da casta Jampal e outra de um Pinot Noir do Tejo. Nós fazemos questão que as garrafas abertas sejam 50 por cento de Portugal e as outras 50 por cento de vinhos estrangeiros, mas não é fácil. Em Espanha, Itália ou França a oferta é enorme; por cá não. E já tivemos a situação de repetir marcas nacionais”, lamenta Ricardo Morais.

De facto, em Portugal, falar de magnuns serve apenas para recordar a famosa frase de Mário Sérgio, o produtor da Quinta das Bágeiras: “A magnum é a garrafa certa para o almoço entre duas pessoas, desde que uma seja abstémica.”

Se é certo que encher garrafas de grande formato sai caro (só a garrafa vazia de 15 litros do Ilha Verdelho custou cerca de 200 euros), também não é menos certo que os produtores e a restauração deveriam ver estes custos como um investimento na notoriedade das respectivas marcas. Um consumidor que tenha a oportunidade de provar um copo de um vinho proveniente de uma big bottle dificilmente se esquece da marca. E isso, no inferno competitivo de preços e referências, não é um detalhe. Para produtores e donos de restaurantes.

O vinho Ilha Verdelho 2019 está à venda em garrafa de 0,75l por 25 euros


PS: A atribuição de nomes de reis babilónios, reis de Israel, reis magos e outros personagens bíblicos às garrafas de vinho de grande formato é uma história misteriosa e fascinante, que mete Champagne pelo meio (só podia). Mas como é um tema longo, fica para um dia em que falaremos da história da garrafa de vidro ao longo dos séculos.

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