Papa reconheceu no avião que o que aconteceu às crianças indígenas no Canadá foi mais de um século de “genocídio”

Só no regresso a casa, depois de seis dias a pedir desculpas, é que na resposta à pergunta de um jornalista Francisco usou a palavra, confessando que não a usou antes porque não se lembrara.

Foto
Papa Francisco teve de se deslocar a maior parte do tempo que esteve no Canadá numa cadeira de rodas VATICAN MEDIA HANDOUT/EPA

O Papa Francisco apelidou o papel da Igreja Católica na aculturação à força de crianças indígenas no Canadá como “genocídio”. Foi na conferência de imprensa no avião, no começo do voo de regresso a Roma depois de seis dias de viagem de penitência ao Canadá. Em nenhum momento em solo canadiano o Papa Francisco se havia referido à política de retirada à força de crianças indígenas das suas famílias como genocídio e o termo não partiu de sua iniciativa.

Respondendo a um jornalista, que lhe havia perguntado se se poderia apelidar o que se passou no Canadá durante mais ou menos 120 anos (desde os anos 1870 a 1996) como um genocídio, o sumo pontífice concordou que sim, que se tratava de “um genocídio” e que só não usara a palavra porque não se tinha lembrado dela em todos os nove discursos e homílias em que pediu perdão pelos erros cometidos pela Igreja.

“Não disse a palavra porque não me veio à mente, mas descrevi o genocídio. E pedi desculpas, pedi perdão por esse processo que é genocídio”, contestou Francisco.

A Comissão de Verdade e Reconciliação canadiana que investigou o papel dos internatos religiosos católicos, entrevistando cerca de sete mil sobreviventes e testemunhas dos abusos cometidos nessas escolas, onde religiosos e religiosas católicas se entregaram durante mais de um século a arrancar crianças indígenas às suas famílias, comunidades, culturas e formas de pensar (muitas delas morreram devido à violência e aos abusos sexuais e foram enterradas clandestinamente nos terrenos das escolas) chamou-lhe “genocídio cultural” no seu relatório publicado em 2015.

O termo “genocídio” começou a ser generalizadamente usado em 2021, conta o Globe and Mail, depois do povo Tk’emlúps te Secwépemc ter encontrado à volta de duas centenas de sepulturas não identificadas no sítio onde se localizava antes o internato de Kamloops, na Colúmbia Britânica.

Desde então, vários povos indígenas têm vindo a investigar os terrenos de antigos colégios internos católicos, onde foram encontrados outros possíveis cemitérios clandestinos.

No ano passado, a deputada Leah Gazan, do Novo Partido Democrático (o mais à esquerda dos três grandes partidos federais) tentou sem sucesso que o Parlamento classificasse a experiência das escolas religiosas como genocídio.

“Raptar crianças, mudar a cultura, mudar a mentalidade, mudar as tradições, mudar uma raça, digamos assim, toda uma cultura”, disse o papa. “Sim, genocídio é uma palavra técnica, mas não a usei porque não pensei nela, mas descreveria… sim, é um genocídio, sim, sim, claramente. Pode dizer-se que foi um genocídio”.

Francisco falava depois da última etapa da viagem de penitência ao Canadá, em Iqaluit, na província de Nunavut, no círculo polar árctico, onde pediu desculpa aos Inuit pelos seus filhos que lhes foram retirados para serem aculturados e desenraizados nos colégios internos católicos por onde passaram 150 mil crianças das Primeiras Nações, Métis e Inuits em mais de um século.

Demissão e restrição física

Aos 85 anos, o sumo pontífice mostrou nos seis dias de viagem a fragilidade física que tem limitado a sua capacidade de deslocação, obrigando ao recurso a cadeira de rodas devido ao problema num joelho. Questionado sobre a possibilidade de renunciar ao cargo como fez o seu antecessor, Bento XVI, Francisco não pôs de lado a hipótese.

“A porta está aberta. É uma opção muito normal”, disse no regresso a Roma. Embora garantisse que não está a cogitar fazê-lo para já, acrescentou que é algo a considerar tendo em conta a sua fragilidade física.

“Não acho que posso continuar com o mesmo ritmo de viagens de antes. Tendo em conta a minha idade e a minha limitação, tenho que levar as coisas com calma”, disse aos jornalistas.

Apesar de o seu problema poder ser resolvido com uma operação, Francisco explicou que não quer passar por uma nova operação, pouco mais de um ano depois da intervenção cirúrgica ao cólon a que foi submetido. “Com a anestesia não se brinca”, exclamou.

Sugerir correcção
Ler 21 comentários