Ana Gomes Ferreira (1966-2022), a jornalista que nos desafiava a ver o avesso do mundo

Pertenceu à equipa fundadora do PÚBLICO, foi correspondente em Nova Iorque, repórter, editora da revista e da secção Mundo. Ensinou-nos sempre a ir para lá do óbvio.

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Teresa de Sousa: "De um tema que parecia quase fútil, ela fazia o ponto de partida para uma coisa interessante e relevante" Enric Vives-Rubio

“Modesta” e “generosa”, mas com uma “lucidez enorme” e uma “intuição política especial”, acompanhada por um fino sentido de humor, Ana Gomes Ferreira fazia o que uma boa editora deve fazer: “Deixava os outros brilhar”. É assim que Jorge Almeida Fernandes recorda a jornalista e editora da secção Mundo do PÚBLICO, que morreu esta quarta-feira, aos 56 anos, na sequência de um cancro.

Não é pequeno o elogio do jornalista veterano da política internacional do jornal e ex-editor da mesma secção: “Quando divergíamos na interpretação de algum acontecimento, se eu dizia que era assim e ela via as coisas de outra maneira, geralmente era ela quem tinha razão. Era das pessoas mais lúcidas que conheci no jornal”.

A Ana “ajudava-nos a ver o avesso do avesso do avesso, como diz o Caetano [Veloso]”, confirma a colega e amiga, também jornalista do PÚBLICO, Leonete Botelho. “Havia um gosto de discutir um assunto, de debater, de ver os vários lados. Mostrava-nos que as coisas pareciam ir para um sítio, mas podiam ir para outro. Não era uma pessoa para quem as coisas fossem óbvias. Pensava pela própria cabeça.” E, nessa leitura atenta da realidade, fosse enquanto jornalista da Cultura, da Sociedade ou do Mundo, ou enquanto editora da revista de domingo, não descartava nada. Mais uma vez é a palavra “lúcida” que parece a certa: “Via de uma forma tão lúcida os grandes acontecimentos como os fait-divers.”

Conseguia “olhar o macro e o micro ao mesmo tempo, focar e desfocar”, diz Leonete. Fê-lo com particular sensibilidade nas reportagens que escreveu de Nova Iorque durante o 11 de Setembro de 2001, quando era correspondente nos EUA, fazendo, por exemplo, chegar a tragédia, como eco perdido em desajustadas boas intenções, ao interior de uma carruagem de metro: “O condutor do metro decide ser simpático. Vai ouvindo, pelo intercomunicador, as notícias. Vai passando as notícias aos passageiros. É boa a intenção. É mau o resultado. ‘Parece que o incêndio é cada vez maior. Parece que há bocados das torres a cair por todo o lado’. A carruagem volta a mexer-se. A carruagem volta a parar. ‘Senhores passageiros, estamos em posição de informar que estão a acontecer ataques noutras zonas do país’”.

Vasco Câmara, editor do caderno Ípsilon, partilhou com ela a secção (na altura, a da Cultura) e cumplicidades várias no início dos anos 1990, quando o PÚBLICO nasceu. “Lembro-me da Ana a querer ficar em Lisboa, no final de horas e horas de trabalho — ela morava no Barreiro — para prolongar a experiência do jornal nos comes e bebes com os colegas, connosco. A vida privada e a vida profissional nesses anos eram obsessivamente inseparáveis. Vivíamos perto, se calhar demasiado perto, dos medos uns dos outros. Expusemos o nosso desabrochar, a aprendizagem sofrida da escrita.”

Se para ela o mundo não era óbvio, o contrário também se aplicava. A Ana, diz Vasco Câmara, “dificultava qualquer leitura apressada da sua pessoa. O nosso editor de Cultura, o Torcato Sepúlveda, ficava às aranhas perante a dificuldade de a ‘ler’, de perceber que raio de dor havia ali quando ela entrava na secção, em pleno Agosto, com camisolas de lã com mangas que lhe tapavam as mãos e a beber chá quente como se nevasse lá fora”.

Mas esses tempos de “ligação despudorada entre todos nós” passaram há muito e, desse enigma inicial, recorda ainda Vasco, “a Ana desabrochou” e “com os anos, aprendeu a mostrar o perverso, porque discreto, sentido de humor que tinha (hoje pergunto-me se a lã e o chá quente já não eram isso)”.

As camisolas de lã e o chá mantiveram-se sempre, confirma Sofia Lorena, jornalista do Mundo, que trabalhou com a Ana até ao fim. Mas a rapariga que intrigava Torcato Sepúlveda soube transformar a sua forma particular de questionar o mundo num ponto de referência para todos os que, de uma maneira ou outra, lidavam com ela.

Já doente, e a partir de casa, até ao passado mês de Abril, continuava a enviar aos jornalistas sugestões de trabalhos. Sugestões que, resume Sofia, “reflectiam a Ana a olhar para o mundo de uma forma tão descomplexada que podia ir da casa de Verão do Presidente de um determinado país até ao debate mais cinzento do Parlamento”. Tudo tinha um significado e tudo nos ajudava a perceber alguma coisa, acreditava Ana. “A marca mais forte dela enquanto editora”, continua Sofia, “era o desafiar a fazer coisas menos óbvias e que num primeiro momento pareciam impossíveis — era a ideia de ser tudo possível.”

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Durante uma reunião para o planeamento da edição de aniversário do jornal em 2017 Rui Gaudêncio

Também para Teresa de Sousa, que tal como Jorge Almeida Fernandes é uma veterana da política internacional do PÚBLICO, Ana continuou quase até ao fim a enviar ideias e sugestões. “Foi fantástico trabalhar com ela. Era uma excelente editora, com uma sensibilidade enorme para a actualidade. Um dia ofereci-lhe um livro meu e escrevi na dedicatória que ela tinha sido a minha melhor surpresa no PÚBLICO. E foi. De um tema que parecia quase fútil, ela fazia o ponto de partida para uma coisa interessante e relevante. Isso tornava os assuntos mais atractivos e fazia-nos descer à Terra.”

Sofia Lorena sempre pensou que “a Ana devia ser editora de uma publicação que não existia e que seria perfeita para ela”, para a sua forma aberta de olhar o mundo. Leonete Botelho recorda que Ana lhe dizia que gostaria de “abrir uma escola de jornalismo para mostrar uma visão menos pré-fabricada do que a que hoje se ensina, um jornalismo mais de reportagem, mais vívido”. Tê-lo-ia feito muito bem, acredita Leonete. “A Ana punha em causa as nossas certezas e só isso é uma atitude jornalística por excelência.”

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