“Os tempos da ONU não condizem com a urgência dos grandes desafios do planeta”

Tiago Pitta e Cunha, administrador da Fundação Oceano Azul, diz que eventos como a Conferência dos Oceanos, que se realiza em Lisboa no fim do mês, “colocam os temas na agenda internacional”, mas defende estar na hora de se passar do diálogo para a acção.

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Tiago Pitta e Cunha na conferência sobre a crise climática que o PÚBLICO organizou em Março Rui Gaudencio

Tiago Pitta e Cunha acredita que acontecerão “debates muito interessantes” durante a segunda Conferência dos Oceanos da Organização das Nações Unidas (ONU), que decorre em Lisboa entre 27 de Junho e 1 de Julho, mas duvida que do evento venham a sair “grandes decisões”. O que é preocupante, argumenta, justificando que “temos de passar à acção” urgentemente. “Os tempos da ONU não condizem com a urgência dos grandes desafios do nosso planeta”, diz ao PÚBLICO o administrador da Fundação Oceano Azul, que, no quarto episódio do podcast Azul, defende também a necessidade de Portugal investir na criação de mais áreas marinhas protegidas e abdicar da produção de energia hídrica, apostando sobretudo em projectos de energia eólica offshore.

Em termos práticos, para que servirá a Conferência dos Oceanos? “Apenas” para diagnosticar problemas ou para traçar metas mais concretas?
Muitos decisores políticos dizem que o tempo de falarmos dos oceanos já acabou — temos, agora, de passar à acção. Infelizmente, pela experiência que tenho (trabalhei nas Nações Unidas durante sete anos), acho que estas conferências da ONU não têm o formato ideal para se passar à acção.

A lentidão da ONU é muito grande. Quando saí de lá, em 2002, já a União Europeia (UE) pedia que fosse negociado um tratado para a conservação do alto-mar. Essas negociações ainda não terminaram. Os tempos da ONU não condizem com a urgência dos grandes desafios do planeta. Quando aconteceu a primeira Conferência dos Oceanos [Nova Iorque, 2017], falou-se bastante dos plásticos e da morte dos corais. Isso foi positivo. Acho que estas conferências colocam os temas na agenda internacional. Mas não é aqui que conseguiremos ter grandes decisões.

Para isso, temos de criar um pacto global para os oceanos, que elenque as prioridades e defina as obrigações de cada país. Mais de 100 países dizem que temos de chegar a 2030 com 30% de áreas marinhas protegidas (Portugal está neste momento apenas nos 7%). Era importante haver um pacto que delineasse as metas para cada país no âmbito dessa agenda. Tem de haver um Acordo de Paris para os oceanos.

E acha que ele pode começar a nascer a partir dos debates tidos ao abrigo da Conferência dos Oceanos?
Não tenho a certeza. Acho que não está na agenda.

Fazia, ainda agora, referência à meta “30x30”, uma campanha para conseguimos chegar a 2030 com 30% do oceano como áreas marinhas protegidas. O que explica o facto de estarmos tão distantes dessa percentagem (apenas 7%, disse)?
Refira-se que o resto do mundo também está nos 7%. Mas a média mundial não é suficiente para um país que quer ser líder nas discussões internacionais sobre os oceanos. Temos de dar o exemplo.

A Fundação Oceano Azul está a trabalhar com o Governo português e os governos regionais da Madeira e dos Açores — e até mesmo com diversas autarquias em várias áreas da costa portuguesa — para criar mais áreas marinhas protegidas. Recentemente, conseguimos, com o Governo Regional da Madeira, o alargamento da área marinha protegida das [ilhas] Selvagens. E estamos a trabalhar com o Governo Regional dos Açores para transformar em áreas marinhas protegidas 30% da zona económica exclusiva do arquipélago.

Temos de salvar o que resta em termos da nossa biodiversidade marinha (que é imensa). O futuro vai passar pela bioeconomia azul e ela tem como matéria-prima a biodiversidade marinha.​

No início do mês, analisámos, no Azul, uma série de números que, a propósito do Dia Mundial do Ambiente, a Pordata compilou para fazer um raio-X da situação ambiental em Portugal. Ouvimos vários especialistas e, falando sobre energias renováveis, Alexandra Azevedo, da Quercus, deixou no ar a seguinte questão: “Num contexto de seca — e as alterações climáticas levarão a muitos mais anos de seca —, a energia hídrica é assim tão renovável?” Como responderia?
De facto, temos de olhar para as energias renováveis de outra maneira. O potencial hídrico de Portugal não está a aumentar, tendo em conta a evolução negativa dos padrões de pluviosidade. Aliás, a Sul do Tejo as notícias são catastróficas. Está a prever-se uma diminuição da pluviosidade nos próximos anos até 30%. Isso significa que tudo vai mudar nessa região.

Portugal nunca foi um país muito rico em energia hídrica — nós não somos a Noruega. E a energia hídrica é extremamente nociva para a biodiversidade terrestre. O que fazemos é cimentar vales inteiros de zonas muito ricas em biodiversidade e inundá-los. Com isso, deixamos de ter toda essa biodiversidade.

Na Europa, só Portugal é que, dentro deste século, continuou com um programa de construção de barragens para a produção de energia hídrica. Enquanto cidadão, devo fazer uma diferenciação entre as barragens que existem para a produção de energia hídrica e as barragens que existem para [ser] reservas estratégicas de água. Ter essas reservas estratégicas parece-me razoável, tendo em conta a baixa pluviosidade. Mas sou extremamente céptico em relação à produção de energia hídrica. E nós temos condições únicas no oceano para produzir energia eólica offshore. O nosso oceano produz até cinco mil horas de vento por ano. Em terra, são produzidas apenas três mil horas de vento por ano. Quer isto dizer que o vento azul é muito mais forte que o vento verde.

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