Jornalista e antropólogo foram mortos por pescadores ilegais na Amazónia, diz imprensa brasileira

O desfecho do caso que envolveu o jornalista Dom Phillips e o especialista em assuntos indígenas Bruno Pereira não é surpreendente numa região marcada pela violência.

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Operações de busca na Amazónia decorrem há mais de uma semana BRUNO KELLY / Reuters

O jornalista britânico Dom Phillips e o especialista em assuntos indígenas Bruno Pereira foram assassinados por pescadores ilegais na Amazónia, de acordo com um dos suspeitos que, segundo o canal Band, terá confessado os crimes à Polícia Federal, dez dias depois do desaparecimento de ambos. Há vários dias que as investigações policiais já apontavam para a tese do homicídio que, embora seja um desfecho trágico, não surpreende quem conhece esta região marcada pela violência.

Na terça-feira, a Polícia Civil do Amazonas tinha feito uma segunda detenção relacionada com os desaparecimentos. As autoridades prenderam Oseney da Costa de Oliveira, irmão do primeiro suspeito pelos desaparecimentos, o pescador Amarildo Oliveira, que continua detido. Um deles, diz a Band, acabou por confessar que mataram o jornalista e o antropólogo depois de terem sido surpreendidos a pescar ilegalmente no rio Itaquaí. Phillips e Pereira foram levados para uma vala onde foram executados. Depois, os dois irmãos esquartejaram os corpos e incendiaram os restos mortais.

Pelo seu trabalho, os dois eram vistos como inimigos de vários sectores com interesses nesta região da Amazónia, desde os madeireiros, passando pelos garimpeiros, pescadores e caçadores, e até pelos grupos criminosos ligados ao tráfico de droga.

Ainda antes de ser confirmado o desfecho do caso, o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, disse esta quarta-feira que Phillips, jornalista que vivia há 15 anos no Brasil e colaborava regularmente com jornais como o Guardian, era “mal visto” na Amazónia “porque fazia muita matéria contra garimpeiros”.

História de violência

A região do Vale do Javari é uma extensa área, ligeiramente superior à da Áustria, que alberga 26 grupos indígenas diferentes, entre os quais 19 povos isolados, ou seja, aqueles indígenas que rejeitam totalmente o contacto com homens “brancos”, geralmente motivados por experiências traumáticas anteriores, como massacres ou a propagação de doenças. No Vale do Javari existe a maior concentração de povos indígenas isolados de todo o mundo.

A Constituição brasileira de 1988 garante a demarcação das terras dos chamados “povos originários”, como forma de corrigir a tomada do território na era colonial e os abusos cometidos pelos colonizadores portugueses e continuados depois da independência, em 1822. Foram criados vários organismos públicos para assegurar o cumprimento desse desígnio, entre os quais a Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável por avaliar e homologar as terras indígenas – processos geralmente muito longos, que podem durar várias gerações.

Em 2001, foi oficialmente criada a terra indígena do Vale do Javari, no extremo Norte do estado do Amazonas, na confluência das fronteiras com o Peru e a Colômbia. Ao abrigo dessa demarcação territorial, cabe aos indígenas, com o apoio de entidades públicas, a gestão dessas terras e a sua preservação, não podendo ser usadas para a exploração de recursos naturais. A atribuição de terras aos povos indígenas funciona também como o reconhecimento de que as suas práticas no manejo da terra são mais adequadas para conter a exploração intensiva dos solos e das águas.

É neste contexto que as terras atribuídas aos povos indígenas por todo o Brasil são alvo de uma constante ambição por parte de todos aqueles que fazem da exploração dos recursos naturais a sua subsistência: agricultores, produtores de gado, caçadores, pescadores, madeireiros ou garimpeiros.

A insegurança nas terras indígenas tem aumentado nos últimos anos: segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aumentou em 9,2% a violência letal, entre 2018 e 2020, nos municípios amazónicos na região Norte do Brasil, onde se situa o Vale do Javari. No ano passado, os assassínios de indígenas a nível nacional aumentaram 21,6%, de acordo com o Atlas da Violência.

O agravamento da insegurança na Amazónia é um sintoma da política ambiental do Governo de Bolsonaro, que sempre foi crítico da demarcação de terras e da preservação das terras e modos de vida indígenas. Em Fevereiro, o Presidente congratulou-se publicamente por não se ter criado nenhuma nova terra indígena desde que tomou posse, em 2019. Bolsonaro é também conhecido pela desvalorização dos esforços de protecção da floresta amazónica, que tem visto as taxas de desflorestação aumentar de ano para ano.

Para além das declarações, o Governo federal tem retirado recursos e enfraquecido os órgãos públicos de protecção ambiental e de gestão das terras indígenas. Um relatório interno do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) alertava para a possibilidade de prescrição de mais de cinco mil multas por infracções ambientais, muitas das quais ligadas provavelmente a desflorestação ilegal ou a invasão de terras indígenas.

Já a Funai tem sido alvo de um aparelhamento operado pelo Governo, que nomeou vários militares e ex-agentes policiais para cargos de chefia, habitualmente ocupados por especialistas em assuntos indígenas, juristas ou antropólogos. O actual presidente, Marcelo Xavier, é agente da Polícia Federal e chegou a defender publicamente a exploração económica das terras indígenas.

Foi com este pano de fundo que Dom Phillips e Bruno Pereira fizeram a fatídica viagem pelo rio Itaquaí, onde foram vistos pela última vez. Ao longo da sua carreira, Phillips fez várias visitas à Amazónia e encontrava-se a recolher informações para um livro sobre formas de combater a destruição da maior floresta tropical do planeta. Pereira era um profundo conhecedor da região e era descrito como um aliado dos povos indígenas.

Em 2019, foi afastado da chefia do departamento da Funai responsável pelos povos indígenas isolados depois de ter liderado uma operação contra a invasão da Terra Yanomami por um grupo de garimpeiros. Desde então, o antropólogo pediu uma licença do organismo estatal para apoiar a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava) e era alvo frequente de ameaças.

No El País, a jornalista Eliane Brum, com uma larga carreira na cobertura de temas ligados à Amazónia, diz que o caso de Phillips e Pereira não representa uma excepção no contexto do historial de violência da região. “Significa que a guerra da Amazónia alcançou um cidadão do hemisfério norte, um jornalista respeitado, um homem branco. É um facto novo que indica que se cruzou um limite, a partir do qual o risco aumenta para todos.”

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