Lembro-me de si

Lembro-me de si, dos momentos das duas. Lembro-me de si. “Estou tão feia.” A queixar-se das selfies que eu tirava consigo. Lembro-me de si, a olhar em silêncio para mim.

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“Qualquer dia morro.” Lembro-me de si. A fazer palavras cruzadas. Lembro-me de si. Quando vou a sua casa e olho para a cadeira onde costumava estar. Lembro-me de si. “Não me apoquentem!” Lembro-me de si. Quando aparece o David Beckham na televisão. “O homem mais bonito do mundo.” A seguir ao Fábio Assunção.” Lembro-me de si. “Estou com a cabeça em água”. Lembro-me de si. A Margarida vai casar. E eu lembro-me de si. Quando vou ao Corte Inglés. Quando ando de táxi. Quando ouço o Leãozinho do Caetano Veloso. A rezar ao anjinho da guarda. Lembro-me de si. “Meu anjo da guarda, minha companhia.” Lembro-me de si. O João vai ser pai. E eu lembro-me de si. “Quem é?, “Sou eu. Lembro-me de si. A abrir a porta a todos os eus que éramos nós. Quando tenho uma dúvida de português que o ciberdúvidas não esclarece. Lembro-me de si.

A enervar-se com o comando da televisão. De roupão cor-de-rosa. A dizer adeus na varanda. A temperar os bifes de peru. “Raça da miúda.” Lembro-me de si. A bebericar uma taça de champanhe. A atravessar a rua. Lembro-me de si. “Meu rico filho.” Lembro-me de si. De volta das sobremesas. A consolar as nossas birras. “Não te arrelies.” Lembro-me de si.

Em Tondela, à sombra. Vejo uma cameleira. Lembro-me de si. A reclamar dos desenhos do Francisco: “Estou velha.” Lembro-me de si, do seu perfume na missa ao meu lado; lembro-me de si, a dividirmos o croissant com chocolate da Benard. Lembro-me de si, dos momentos das duas. Lembro-me de si. “Estou tão feia.” A queixar-se das selfies que eu tirava consigo. Lembro-me de si, a olhar em silêncio para mim.

A afugentar as migalhas do jornal. Lembro-me de si. As suas mãos, sempre geladas. Lembro-me de si. As suas pernas, brancas com veias como o mármore. Os seus olhos muito azuis. Lembro-me de si. A aclarar a garganta antes de atender o telefone. “Está lá?” “Avó?” “Sou, Madalena?” “Sou, avó”.

“És tão jeitoso.” Para o Francisco depois de ele abrir um pacote de abertura simples. Lembro-me de si. “Chatos!”, a bufar depois de desligar o telefone. De touca e toalha de banho a correr para abrir a porta. A comer amendoins. “Cheiras a raposinho.”

Lembro-me de si. Quando quero tomar uma decisão e penso no que diria. Todos os dias me lembro de si. Quando a família discute, lembro-me de si. Quando vejo um livro do Eça, lembro-me de si. Quando há guerra no mundo, lembro-me de si. Quando é Natal, lembro-me de si. Quando é Carnaval, lembro-me de si. Quando é domingo à noite, lembro-me de si. Quando adormeço, lembro-me de si. Às vezes, quando acordo, lembro-me de si. Quando me dói a cabeça, lembro-me de si. Quando vejo um termómetro, lembro-me de si. Quando penso na infância, lembro-me de si. Quando penso no futuro, lembro-me de si. Quando conto histórias às minhas filhas, lembro-me de si. Quando as tias riem, lembro-me de si. Quando as tias choram, lembro-me de si. Quando estou distraída, lembro-me de si. Quando estou muito feliz, lembro-me de si. Quando estou muito triste, lembro-me de si. Quando vejo figos, lembro-me de si. Quando estou a escrever, lembro-me de si.

“Inté.” Lembro-me de si.

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