Ouçam-se os peritos na realidade escolar

No nosso caso, e tomando como exemplo a falta estrutural de professores, é imperativo ouvir os peritos na realidade escolar e reduzir a enraizada prevalência dos especialistas tradicionais ou instantâneos.

A ideia mais elogiada no dia da Europa (9 de Maio, em Estrasburgo) foi a que considerou os cidadãos como “os peritos na realidade”. Acima de tudo, porque das 49 propostas que apresentaram só duas se dirigiam a questões institucionais. E como a democracia reclama que este elogio seja consequente, aplique-se a ideia nos diversos países.

No nosso caso, e tomando como exemplo a falta estrutural de professores, é imperativo ouvir os peritos na realidade escolar e reduzir a enraizada prevalência dos especialistas tradicionais ou instantâneos. Esta auscultação é crucial para o valor democrático da escola pública. Aliás, em 1986 fez-se uma audição alargada aos peritos na realidade para se escrever a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) que, apesar de tudo, ainda perdura.

Antes do mais, constate-se a erupção mediática de especialistas instantâneos em professores. Uma procura pelo género leva-nos aos especialistas instantâneos do PÚBLICO e da Gradiva (1996). Mas como os seis livrinhos versam Arte Moderna, Ciência, Economia, Música, Filosofia e Sexo, resta-nos o capítulo “Porque faltam professores?”, da revista Visão (5 de Maio). Segundo o comentador Marques Mendes, é até um “documento oficial que permite finalmente falar da falta de professores” (SIC, 8 de Maio). Digamos que é uma espécie de sétima dimensão para os especialistas instantâneos. Facilita-lhes a omissão do que se disse durante duas décadas e dispensa-os do jargão da tudologia: “não percebo nada disso, mas”.

O interessante artigo da Visão recorre a especialistas tradicionais e evidencia o seu descolamento da realidade: a presidente do CNE, Maria Brederode Santos, propõe o aumento do número de alunos por turma e o ex-ministro Marçal Grilo sugere o regresso da trágica bolsa de contratação de professores pelas escolas experimentada durante a “troika”.

Já um director escolar, Filinto Lima, com mais de 14 anos consecutivos nessa função (um privilégio que não é sequer concedido à presidência da nação), apela, e bem, à bondade das finanças. Também esteve no programa “É ou não é”, da RTP1 (19 de Abril), com outra especialista tradicional, a ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues. Para além da célebre “não sei como chegámos aqui assim, não sei e não quero saber”, a ex-ministra dirigiu-se a esse dirigente – uma “classe” que criou – e sentenciou, inspirando-se na secessão como arma da democracia e numa simbiose bélica, messiânica e surreal: “São os braços direitos do poder que resolverão a falta de professores.”

Mas o que o coro mediático especializado repetiu de mais nefasto nas últimas décadas, resume-se em cinco tópicos:

  • As divagações à volta dos bons e dos maus professores criaram um clima generalizado de exclusão. Desprezaram o exemplo das organizações bem sucedidas, que instituem políticas inclusivas duradouras ao nivelarem por cima os procedimentos, ao avaliarem o desempenho “olhos nos olhos” e ao reconverterem profissionais através de mecanismos civilizados;
  • A proclamação de que os professores não podem chegar todos ao topo instituiu um clima de fuga à profissão. Se o topo (10.º escalão) já é o 57.º dos 115 índices remuneratórios da administração pública, o topo realista (8.º escalão), e uma vez que falta recuperar tempo de serviço, é o 45.º e as quotas e vagas da avaliação travam milhares nos trigésimos lugares;
  • A ideia menor de que os professores são parciais na definição dos destinos das escolas empurrou o ambiente escolar para uma prevalência do senso comum e sufragou o inferno burocrático que testemunhou o clima de desconfiança e de desautorização dos professores;
  • A supressão mediática da perda da capacidade de elevador social da escola pública –​só 10% dos filhos de famílias pobres e com poucas qualificações chegam ao ensino superior" (9 de Maio, Banco de Portugal) – demitiu a sociedade dessa responsabilidade democrática;
  • A negação da história da escola pública na democracia criou um clima de revolta contida. Insistir no absurdo de que os professores foram formados para leccionar apenas a bons alunos nega a OCDE – “os professores portugueses são os melhores a adaptar as aulas às necessidades dos alunos” –, as lições de quem ensina a turmas numerosas e o facto de essa formação ter uma história de diversidade.

E, regressando à ideia da audição dos peritos na realidade escolar para atenuar a falta de professores e as brutais desigualdades educativas, inscrevam-se mais duas questões:

  1. Se a ideia de escola se deveu à necessidade de diferenciação em relação à família nos espaços para aprender e para socializar, e se após um século as sociedades não descobriram organizações substitutas, é insensato exigir da escola a totalidade educativa e desprezar que o saber escolar nuclear só progride num permanente ir e voltar entre a sala aula e a sua envolvência;
  2. Se o completamente digital exige prudência porque tem sérias implicações na centralidade da sala de aula – os “gigantes da web que querem controlar, investem mais no ensino à distância do que na 5G, na telemedicina, nos drones e no comércio online generalizado” (Naomi Klein) –, cresce o receio com os efeitos da sobreposição do isolamento físico em relação ao gregário associados a uma via métrica e “pavloviana” formadora de capital humano em detrimento da humanização.

Convoque-se, portanto, um reinício consolidado nas ideias de simplificação e de inclusão. Ouçam-se os peritos, num modelo semelhante ao da LBSE, e busque-se o sucesso escolar de qualidade como reforço da classe média, e da consolidação democrática, assente na seguinte aspiração patrimonial e intemporal para os peritos na realidade: desconstrua-se definitivamente o raciocínio de que aprender é uma competição e eleve-se a ideia de que se quer aprender porque se é curioso e se quer saber mais.

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