Haja respeito!

Sou médico há quase 44 anos e nunca ouvi uma enormidade semelhante, que repudio veementemente. Se vier a ser eleito bastonário da Ordem dos Médicos, podem os médicos estar certos de que me oporei frontal e absolutamente a todos quantos nos faltem ao respeito.

“Sou contra o aumento da valorização da carreira médica (…). Enquanto não metermos na cabeça que pode haver juristas com falta de emprego, professores com falta de emprego, arqueólogos com falta de emprego, artistas com falta de emprego, mas médicos não podemos ter.” Estas palavras foram proferidas pelo presidente da Câmara Municipal de Odivelas. Ora, no entender deste autarca socialista, as graves e continuadas dificuldades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) na gestão dos recursos humanos médicos resolver-se-iam menosprezando e desvalorizando o trabalho dos médicos.

Na opinião deste responsável autárquico, o Estado sairá sempre a perder na tentativa de valorizar os médicos porque o setor privado vai sempre conseguir pagar mais. Ou seja, será inevitável a sangria de médicos para o setor privado. É suposto, então, baixarmos os braços e acharmos que um médico desmotivado, desvalorizado e exausto pode prestar um bom serviço à população?

Como se este juízo não fosse já um aleijão, a forma proposta para resolver esse problema seria muito simples, à boa moda populista: promover o aumento do, já existente, desemprego médico. E o argumento era – pasme-se! –​ se existem outras profissões com desemprego, porque é que os médicos não haveriam de sofrer do mesmo?

Além do absurdo de lançar obstinadamente para o desemprego boa parte dos estudantes portugueses mais bem preparados, nivela por baixo os objetivos estratégicos do país: se os outros estão mal, estes também têm de estar.

Ademais, parece desconhecer que o desemprego médico é já uma penosa realidade e que todos os anos cerca de 30% dos médicos recém-formados não têm vaga no SNS.

Para o referido autarca, o ideal seria quando, por exemplo, um neurocirurgião ou um dermatologista, com um longo tempo e elevado custo de formação e um salário baixo, abandonarem o SNS, serem de imediato substituídos por outros colegas no desemprego e sem qualquer especialidade, incapazes, portanto, de cumprir as funções dos anteriores, mas com salário ainda mais baixo.

Com a prestação de serviços de médicos subcontratados, o Estado gastou, em 2021, mais de 142 milhões de euros e, adicionando as horas extra, o custo dispara para 530 milhões. Seria bem mais barato remunerar adequadamente os médicos para que não abandonem o SNS.

Sou médico há quase 44 anos e nunca ouvi uma enormidade semelhante, que repudio veementemente. Se vier a ser eleito bastonário da Ordem dos Médicos, cargo a que sou candidato, podem os médicos estar certos de que me oporei frontal e absolutamente a todos quantos nos faltem ao respeito e, por ação ou omissão, procurem apoucar a nossa, tão nobre, profissão.

É que os médicos, como certamente todos os outros profissionais, exigem ser valorizados e respeitados.

A violência contra os médicos, que infelizmente é hoje uma crua realidade, encontra naquele tipo inferior de afirmações o terreno fértil para medrar. Mas quem as profere deve também, provavelmente, considerar normal que os médicos, não se portando bem, sejam surrados, já agora com vexame público.

É triste e preocupante que alguém, para mais um presidente de câmara, assim pense e proponha.

Mas muito mais grave e aflitivo seria sequer imaginar que a senhora ministra da Saúde não se demarque, rápida e claramente, das declarações daquele seu correligionário político.

Exige-se a um líder que proteja a sua equipa. Isto é, que a valorize e dela cuide.

O principal empregador nacional de médicos é, de longe, o Ministério da Saúde e, por isso, a senhora ministra tem aqui a responsabilidade e o dever de se pronunciar sobre tão deploráveis afirmações.

Concorda ou discorda? Apenas por palavras ou com ações apreciadoras dos médicos? Acha que os médicos são realmente heróis? Ou só o foram quando deu jeito, durante o auge da pandemia?

Está, ou não, disponível para manifestar aos médicos, porque foram eles, e apenas eles, o alvo singular deste desrespeito, a sua solidariedade institucional, como ministra, e preocupação pessoal, enquanto cidadã?

Se sim, por favor, diga-nos, senhora ministra.

É que quem não se sente, não é filho de boa gente!

Director do Serviço de Reumatologia no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, EPE. – Hospital de Egas Moniz
Professor Catedrático da NOVA Medical School, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade NOVA de Lisboa
Candidato a Bastonário da Ordem dos Médicos

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

Sugerir correcção
Ler 3 comentários