Estudos Negros: alguns apontamentos

Ficam várias inquietações sobre a implementação desta área de conhecimento na academia portuguesa. Desde logo a questão da composição étnico-racial do corpo docente, que deverá ser esmagadoramente negra, o que levantaria reacções sobre um pretenso “racismo ao contrário” e meritocracia.

Nestes últimos dias, uma curta viagem ao Reino Unido trouxe-me até este texto, um conjunto de apontamentos sobre o que se denomina Black Studies que aqui traduzo para “Estudos Negros”, área inexistente no espaço académico português. Viajei com o objectivo de conhecer a “primeira” licenciatura e mestrado em Estudos Negros no espaço europeu, que a Birmingham City University (BCU) decidiu oferecer, em plena era Black Lives Matter (2017) e na decorrência dos esforços de académicos como Kehinde Andrews.

Os Estudos Negros surgem no final da década de 1960, na sequência e confluência do movimento pelos Direito Civis e Black Power nos EUA, em que estudantes negros do ensino superior reivindicavam, entre outras coisas, a criação de espaços inter/transdisciplinares dentro da academia (sobretudo, entre as ciências sociais e humanidades), que permitissem desocultar criticamente a história e legado intelectual das comunidades afroamericanas. É por esta altura também que o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), em Birmingham, começa a debruçar-se sobre a questão racial através de trabalhos como os de Stuart Hall e, mais tarde, de Paul Gilroy. Hoje, a produção intelectual negra do Reino Unido está longe de ter a influência que teve nos anos 1970 e 1980 e é noutras latitudes que o desenvolvimento mais pujante dessa perspetiva acontece.

No entanto, seria erróneo afirmar que o único berço dos Estudos Negros, no Reino Unido, foi o CCCS e não incluir a forte mobilização política que as comunidades racializadas (de origem africana e asiática) operaram conjuntamente sob a categoria política “Black”, ou o movimento das artes negras do Reino Unido (como os Black Audio Film Collective e Sankofa Film and Video Collective), o movimento das “escolas ao sábado” (Saturday Schools) das comunidades negras, assim como as antigas e quase desaparecidas redes de livrarias e publicações negras independentes. Por outro lado, muitas outras áreas inter/transdisciplinares sempre gravitaram nas imediações dos Estudos Negros e com eles mantêm, consoante o contexto, pontos de contato – é o caso, de entre muitos outros, dos Estudos Africanos, Africana Studies, Racial and Ethnic Studies, Estudos Pós-Coloniais, Critical Race Studies, Decolonial Studies. Existem também outros espaços académicos onde os Estudos Negros se têm desenvolvido na Europa, como a Black Europe Summer School, em Amesterdão, e a Afroeuropeans Network. Esta é, na verdade, uma contabilidade difícil de fazer, exatamente, pelos processos de marginalização a que a área está sujeita, subsistindo em zonas de fronteira da academia, da política, das artes e do quotidiano, por vezes, categorizada com designações asséticas do ponto de vista do debate racial.

Da visita que vos falei ficaram várias inquietações sobre os desafios da implementação dessa área de conhecimento na academia portuguesa. Desde logo a questão da composição étnico-racial do corpo docente, que deverá ser esmagadoramente negra, o que num país “colour blind” como Portugal levantaria, de imediato, reacções sobre um pretenso “racismo ao contrário” e meritocracia. Problema semelhante haveria de colocar-se quando se apresentasse um currículo orientado para o aprofundamento daquilo que são as várias tradições de pensamento teórico e político africano e da diáspora negra, mesmo que, ao contrário do que se possa pensar, este esteja longe de ser um campo restrito e uniforme. São múltiplas as diferenças teóricas (por exemplo entre marxismo negro, os critical race studies, abordagens pós-coloniais, decoloniais, afropessimistas, feministas ou queer), as ancoragens disciplinares, os campos temáticos de aplicação (i.e., educação, sistema de justiça, media, artes, política), mas também de poder entre o conhecimento produzido pelas diferentes diásporas e países africanos.

O número de inscrições nos cursos é uma preocupação evidente, num contexto em que a aceitação institucional de um curso semelhante depende, na verdade, mais de lógicas liberais, do que de um enraizamento das críticas que intelectuais negros/as têm dirigido à academia. Mas talvez ainda mais preocupante seja o risco de se perderem as conexões reais com aquelas que são as bases da produção do conhecimento crítico negro, na sua esmagadora maioria, fora do espaço académico. Um curso como este deveria resultar mais de um movimento em que intervenientes e saberes periféricos disputam e ocupam o espaço académico, abrindo canais para fora da “torre de marfim”, do que de um processo extrativista da academia. Mesmo que existam mais académicos/as negros/as, cursos superiores de Estudos Negros ou semelhantes, poderá a academia – estruturalmente reprodutora das relações de poder – ser um espaço de transformação social e de descolonização do conhecimento?

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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