Ébano na academia

Não existe ainda uma voz coletiva da academia racializada portuguesa como a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, a Association of Black Anthropologists ou movimentos como o #BlackintheIvory, um espaço online de discussão pública sobre o racismo nas universidades.

O artigo anterior discutia como o financiamento e a “gestão” da ciência tal como estão garantem que a “Torre de Marfim” se mantém um espaço branco. Branco nos corpos que têm acesso ao trabalho científico e eurocêntrico nas perspetivas científicas que mobiliza, o tal racismo epistémico. É verdade que mesmo quem tem maior acesso ao trabalho científico vive condenado a uma competição insana numa academia subfinanciada e que premeia com precariedade laboral. Pode também haver quem diga que o “tokenismo” e a corrida à negritude como temática (i.e., presença, experiência, resistência) e ao (pós e des)colonial, trendy na era Black Lives Matter, podem ser vistos como primeiros passos de uma “abertura” difícil, que devagar nos levará ao longe, mas não. E, portanto, embora seja evidente que há obstáculos a montante, defendi no anterior artigo que o sistema científico deveria ter medidas próprias e afirmativas, como quotas étnico-raciais no acesso aos postos de trabalho em investigação e linhas de financiamento específicas para pesquisa sobre o tema. Isso resolveria completamente o problema? Não, não resolveria, mas abriria de forma mais robusta algumas brechas e tornaria, a seu tempo, mais produtivas as contradições.

O artigo de hoje sublinha outros aspetos dessa discussão, embora sem a esgotar: a posição das pessoas racializadas dentro da academia. Tem acontecido nos últimos anos que académicos/as negros/as estrangeiros/as, mundialmente reconhecidos/as, são convidados/as para vir a Portugal. Vêm, no mais das vezes, através do circuito da cultura e das artes, recebidos/as por uma curadoria branca. Apesar das excepções, é raro que nos cheguem pelos circuitos e instituições científicos, como faculdades, centros de investigação e congressos. Não que não devessem vir através do mundo da cultura e das artes, mas imagine-se que, para além desse, estivesse consensualizado, entre as agremiações científicas, o princípio da representatividade étnico-racial nos seus encontros?

Nesses eventos, as/os intelectuais negros/as consagrados/as perguntar-se-ão “mas onde estão os/as colegas negros/as portugueses/as”? Alguns de nós estarão na audiência, certo que não na moderação, no painel de oradores ou na curadoria, e, como tal, a conversa de “nós para nós” dificilmente poderá ocorrer [Alerta para a fragilidade branca: não, não estou a dizer que não podem participar, só não podem é estar no centro, têm que dar espaço, escutar e quiçá, por vezes, até sair]. Os/as curadores/as desses eventos, normalmente com a intenção mais ou menos explícita de descolonizar a (re)produção de conhecimento, dificilmente concebem que proporcionar esse tipo de espaço, seria igualmente importante.

Na verdade, cientistas negros/as estrangeiros/as chegam-nos essencialmente através de acordos de cooperação, intercâmbios universitários ou em forma de “fuga de cérebros” do Sul Global, sobretudo de ex-colónias portuguesas, Brasil e PALOP. Em registos de dependência distintos, esses/as académicos/as dificilmente conseguem, quando querem, estabelecer-se na academia portuguesa. Em situação semelhante estão os/as académicos/as negros/as que fizeram cá o seu percurso. Uma parte deles e delas perdê-mo-los/as para outras latitudes, não sendo capazes de os e as reter ou atrair de volta, como é o caso de Grada Kilomba, Sónia Vaz Borges e Vânia Gala, cujo trabalho é hoje internacionalmente reconhecido. A saída sem retorno para fora do país, a “expulsão” da galáxia académica portuguesa, por impossibilidade de nela encontrar trabalho remunerado, estável e academicamente estimulante é o que espera muitos e muitas académicos/as e, no caso dos racializados, esse destino é praticamente uma fatalidade. É claro que existem excepções, académicos/as racializados/as que são hoje professores/as do ensino superior com alguma estabilidade, o que na ausência de uma verdadeira “carreira de investigação” é, muitas vezes, a única forma de continuar a fazer pesquisa. É o caso de Inocência Mata na FLUL-UL, de Sheila Khan na Universidade do Minho, ou de Edalina Sanches no ISCTE-IUL. Mas para todos aqueles e aquelas que estão a concluir ou iniciar os seus doutoramentos, ou que já os concluíram, as chances de permanecer na academia portuguesa são praticamente nulas.

Foi exactamente no sentido de criar um espaço em que académicos/as, artistas e ativistas racializados/as pudessem estabelecer um debate entre si que, em 2019, um grupo de investigadores/as organizou a 7.ª Conferência Bianual da Afroeuropeans Network: In/Visibilidades Negras Contestadas. Durante quatro dias, centenas de académicos/as, artistas e activistas negros/as de todo o mundo, mas sobretudo da Europa, estiveram em Lisboa e discutiram racismo, culturas negras e identidades no contexto europeu. Uma outra iniciativa que importa destacar é o projeto Afro-Port - Afrodescendência em Portugal, que do que tenho conhecimento, é o único projeto financiado pela Fundação para Ciência e a Tecnologia que se debruça sobre os afrodescendentes em Portugal, coordenado por pessoas negras. Desde o seu começo tem procurado convocar diferentes formas de conhecimento produzidas por africanos e afrodescendentes, esbatendo hierarquias entre saberes e resistindo à objetificação dos sujeitos.

Uma e outra iniciativa num espaço académico que “não vê cores” são uma raridade e devem ser valorizadas e multiplicadas. Além do mais, não existe ainda uma voz coletiva da academia racializada portuguesa como a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), a Association of Black Anthropologists ou movimentos como o #BlackintheIvory, um espaço online de discussão pública sobre o racismo nas universidades. No Brasil, essa também tem sido uma das reivindicações do movimento negro, exigindo cotas e a introdução de um currículo não-eurocêntrico não só no ensino básico e secundário mas também na formação avançada e científica. O movimento Why is my curriculum white?, organizado por estudantes racializados no Reino Unido contra a “branquitude” no ensino superior, não terá tido eco imediato por cá, mas os/as estudantes têm-se cada vez mais vindo a organizar em Portugal. É o caso das recentes denúncias de sexismo, racismo, xenofobia e homofobia na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, do grupo Quarentena Académica que denunciou o racismo e xenofobia contra alunos/as brasileiros/as na Universidade do Porto (2020), da campanha da Plataforma Antirracista do ISCTE (2020), do grupo de estudantes que denunciava o racismo e xenofobia na Universidade de Coimbra (2014).

Mas o pensamento intelectual negro e do Sul Global circula sobretudo por outros espaços, fora da academia. São disso exemplo, iniciativas como as Universidades da Plataforma Gueto, as Formações anuais organizadas pelo SOS Racismo, bem como os debates conduzidos por diversas organizações negras, ciganas e antirracistas, pelas Associações de Estudantes Africanos, ou vários encontros, facilitados agora pelo “zoom” da era covid-19, com instituições académicas brasileiras, norte-americanas e africanas. Nas margens da academia, essa rede de pensamento intelectual negro, africano e da diáspora africana – do campo das artes, à ciência e ao movimento social – vai-se constituindo, organicamente interdisciplinar e globalizada, mais inclusiva do ponto de vista dos saberes que convoca. Foi de espaços assim que a tradição intelectual negra sempre se fez, mas isso não dispensa a inscrição no espaço académico, como essa história também nos mostra.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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