De Machado de Assis para Gilberto Gil

É como intérprete do chamado machadiano da invenção da língua brasileira que Gil veste hoje o fardão da Academia Brasileira de Letras.

Quando o cantor e compositor Gilberto Gil vestir o fardão da Academia Brasileira de Letras, neste dia 8 de abril, na sede da instituição, na cidade do Rio de Janeiro, não será mais o espelho que estará a sua frente, mas o povo brasileiro.

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Gilberto Gil em concerto em Portugal, em 2016 Paulo Pimenta

No conto O Espelho, publicado 15 anos antes da fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL), o escritor Machado de Assis, sob a irônica aparência de esboçar uma nova teoria da humanidade, pôs a nu, com maestria poética, a realidade das relações de submissão escravista, criticou duramente a configuração da razão ocidental, invertendo a ordem de dependência do negro e do branco, e indicou a injustiça dos modos de ascensão social.

Sem a estrutura social e política da escravidão, apontava Machado de Assis, não há presença nem importância do senhor e de seus símbolos. É o branco que depende do negro para existir e aparecer, não o contrário, como desejava a ideologia da política escravocrata brasileira.

O escritor negro, a seguir, vai fundar a ABL - que o branco ocupará exclusivamente - para celebrar a armação da língua literária brasileira de que foi artífice. Mais de cem anos passados dessa subversão política e poética, a Academia Brasileira de Letras abre suas portas para receber Gilberto Gil.

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Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de Junho de 1839 – Rio de Janeiro, 29 de Setembro de 1908) DR

Como Gilberto Gil responde ao chamado machadiano da invenção da língua brasileira?

Gil, de todos os importantes membros de sua geração musical, é o que talvez mais se tenha preocupado em encontrar um modo original de comunicar o manancial de suas paixões e ideias, numa linguagem mais plástica, inventiva e constitutiva de uma radicalidade territorial. Sem se preocupar demais com as convenções gramaticais impositivas e com suas regras arbitrárias e constrangedoras, Gilberto Gil buscou novos modos de expressão, de conexão do aqui com o mundo, mas sem deixar de reconhecer, como o escritor Machado de Assis entendia, que seria no jogo do trabalho popular que estaria o fundamento de uma ética e de uma estética autênticas.

O baião, por exemplo, como outras formas musicais ricas do amálgama afro-indígena brasileiro, viria debaixo do barro do chão da pista onde se dança. Isto é, há um mundo em que os seres humanos performam sua existência, que não é neutro nem consensual, em que a dança dos seres do mundo se desenrola. Contudo, da música que contamina o ritmo da vida são donos não os proprietários arbitrários e abusivos da terra e das gramáticas, mas os que a trabalham e que carregam a esperança de mudança, de justiça, de rearranjo político, poético e social. Daí porque, enriquecendo a crítica de Machado de Assis, Gilberto Gil vai apontar os paradoxos dessa propriedade legitimada por um sistema jurídico injusto – no fundo, antijurídico – por meio de uma ironia poética extremamente fina e sútil.

Assim como Machado de Assis, Gilberto Gil também suspeita de grandes teorias e formulações. Machado além de as ironizar, na figura do humanitismo de “Brás Cubas”, finaliza O Espelho sem sequer delinear uma teoria. Gilberto Gil, por sua vez, descreve na canção Um Sonho, a experiência de ser abandonado pela plateia, enquanto proferia uma conferência internacional. Um velho, conta Gil, abandona a sala, assoviando uma triste melodia … “prelúdio bachiano, frevo pernambucano, choro do Pixinguinha”. Acordando, o narrador vai à rua e vê o povo rir e gritar - viva o índio do Xingu!

Com o reconhecimento de seu trabalho e de sua política cósmica e feliz, Gilberto Gil, penso, fará um discurso simples, do povo e para o povo. É a identidade de uma língua que se refaz todos os dias, mas que se afirma na linguagem dos invisíveis que se tornarão presentes e protagonistas sob seu novo fardão. Ao assumi-lo, diante do povo brasileiro, Gilberto Gil recriará a imagem verdadeira de uma nação plural e diversa, livre na expressão, dona de sua cultura e de sua história ultrajada. Que se afirma em sua africanidade, tropicalidade e indigeneidade ancestral.

Recomporá a identidade do povo brasileiro.

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