Quantas tendas vale a cultura?

Quatro anos depois, ainda não há previsões concretas de retorno do Conservatório ao Bairro Alto, e as condições insuficientes nas instalações provisórias começam a fazer-se sentir. Entre vários problemas, destaca-se o facto de não haver salas suficientes para o número de alunos. A solução foi comprar uma tenda e colocá-la no pátio.

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Daniel Rocha

No mesmo dia em que o violoncelista americano Yo-Yo Ma foi tocar à Escola de Música do Conservatório Nacional, em Lisboa, a proposta que venceu o Orçamento Participativo desta instituição foi a da aquisição de tendas para a realização de aulas.

A frase parece absurda, e é preciso contextualizar. O Conservatório, historicamente situado num edifício construído no século XVII no Bairro Alto, foi provisoriamente realojado nas instalações da Escola Secundária Marquês de Pombal, porque, depois de muitos anos de luta, finalmente o Estado concordou que o edifício precisava de obras, e que os alunos de uma das instituições culturais mais importantes do país não deveriam ter aulas em salas onde entrava água da chuva ou caíam pedaços de tecto.

As condições na Marquês de Pombal estavam longe de ser ideais, mas valeria a pena, e afinal de contas as obras só durariam 18 meses. Quatro anos depois, ainda não há previsões concretas de retorno ao Bairro Alto, e as condições insuficientes nas instalações provisórias começam a fazer-se sentir. Entre vários problemas, destaca-se o facto de não haver salas suficientes para o número de alunos. A solução foi comprar uma tenda e colocá-la no pátio. Melhor do que ter aulas na rua (que na verdade, também já aconteceu).

No ano passado chegou a Portugal a comunidade escolar da ANIM, uma prestigiada escola de música do Afeganistão cujos alunos e professores conseguiram fugir do seu país após a tomada de poder dos taliban. São mais de 100 alunos, e a maior parte deles menores de idade que vieram para Portugal sem os pais. Quando o Conservatório tomou conhecimento da situação, moveu mundos para acolhê-los e integrá-los nas suas aulas. A força de vontade dos alunos, professores e funcionários da escola garantiu que, mesmo em condições precárias, tudo seria feito para garantir que estes jovens que já tanto perderam não perderiam também o direito à educação e o direito à música.

Esta semana, Yo-Yo Ma veio a Portugal como Embaixador pela Paz das Nações Unidas e a convite do Conservatório e da ANIM, para trazer visibilidade à situação deste grupo. Não só isso, como deu o seu concerto na tenda, a tal tenda que foi comprada para compensar a falta de salas. E, no mesmo dia, a proposta dos alunos para o Orçamento Participativo que saiu vencedora foi a de se comprar mais tendas, com a mesma finalidade.

A contextualização foi feita, mas a verdade não deixa de parecer absurda. A cultura, hoje, em Portugal, vale um par de tendas. A cultura, hoje, em Portugal, está a ser um dos principais veículos responsáveis pela integração de um grupo de pessoas refugiadas, garantindo que um dos seus direitos mais básicos – a educação – seja assegurado. O Conservatório está recorrentemente entre os melhores lugares no ranking das escolas públicas, ao lado de outras instituições do ensino artístico. O Conservatório trouxe a Portugal um dos maiores violoncelistas do mundo para apontar os holofotes para uma crise humanitária da qual pouco se fala. O Conservatório não tem, sequer, direito, a um espaço próprio. A Cultura faz tanto por um país que faz tão pouco por ela. Imaginem, se conseguirem, como seria um Portugal que investisse na Cultura.

Durante o concerto, Yo-Yo Ma dirigiu-se ao Conservatório e à ANIM: “Não temos os meios, não temos o edifício, mas temos pessoas com coração”. Não poderia ter mais razão, e vemos nesta história a prova de que é possível fazer muito com muito pouco. Mas não é possível fazer tudo. As pessoas com coração são importantíssimas, mas precisam e merecem, no mínimo, um edifício.

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