Motomami: o manifesto da transformação de Rosalía

Aquilo que se escuta em Motomami é mesmo a liberdade e o desejo cumprido de querer ser tudo ao mesmo tempo.

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Rosalía sabe bem o que está a fazer quando coloca Saoko na pole position de Motomami. Não é mera cartada de alinhamento arrancar o seu terceiro álbum com um tema que parece tomar-nos o corpo a partir de um jogo de sintetizador e beat que são um verdadeiro shot de adrenalina musical, talvez inspirado nos momentos mais robustos dos Neptunes / N.E.R.D. (Pharrell Williams e Chad Hugo andam, de facto, por este disco, mas esconderam-se noutros temas). Mas é logo nesses primeiros minutos de Motomami que a cantora catalã nos atira com o seu manifesto: “Yo soy mía, yo me transformo / Una mariposa, yo me transformo / (...) Me contradigo, yo me transformo / Soy to’a la’ cosa’, yo me transformo”. E está tudo aqui – a transformação como natureza, a contradição como direito e consequência assumida, o desejo de ser tudo como voragem criativa, a autodeterminação como estrutura.

E assim, quando um piano jazzístico a soltar notas em desequilíbrio e em atropelo irrompe por Saoko, já está tudo explicado. Em Motomami, muito mais do que em Los Ángeles e em El Mal Querer, Rosalía faz aquilo que lhe apetece, dá constantes guinadas estilísticas e carrega nessa transformação constante que nos sacode enquanto ouvintes de um registo para outro, sem aviso, aproximando-se tanto de M.I.A. quanto de Édith Piaf. Mas se não demoramos a identificar esse movimento de explosão de tema para tema, como se cada nova canção procurasse fugir da anterior, à medida que o álbum avança percebemos que, nalguns casos, Rosalía leva ainda mais longe essa ideia, construindo o casulo e saindo lá de dentro no decurso de uma mesma composição. Exemplo mais flagrante é o de Cuuuuuuuute. Começa claramente em terreno M.I.A., a reboque de um ritmo nervoso e uma voz que remete para as canções de Maya Arulpragasam, para logo a seguir travar a fundo e Rosalía emergir como cantora popular espanhola (algures nos arredores de Sílvia Pérez Cruz), regressando depois ao ponto de partida.

Cuuuuuuuute será o tema em que Rosalía mais se metamorfoseia à medida que a canção avança, mas de forma muito mais subtil encontramos também um pouco disso na magnífica balada Hentai (com o surpreendente dedo de Pharrell e Hugo), sempre de uma desarmante e simples construção r&b, voz e piano numa relação em que a termperatura corporal dispara como só acontece em canções de amor, ainda que aqui a cantora suba a parada e alague de desejo o seu canto – “Te quiero ride como a mi bike / (...) Bebé, te quiero comer ya, ya / Ya te quiero hacer hentai”, aludindo aos animes ou mangas de conteúdo sexual ou pornográfico. A transformação aí, passa pela carnalidade que o tema vai ganhando pelo caminho, de um registo que começa pela doçura e fragilidade e se torna mais libidinoso quando entram em cena programações rítmicas que poderiam ter sido esculpidas pela criatividade crua de Trent Reznor.

Motomami é, pois, frequentemente desconcertante e altamente sedutor nesta clara afirmação de querer ser tudo e não abdicar dessa liberdade para o reafirmar a cada passo. E é isso que explica os saltos que Rosalía imprime ao álbum, saltando do tal Saoko com pinceladas N.E.R.D. para Candy, desaceleração para uma pop downtempo global, com que poderíamos esbarrar numa Beyoncé ou numa Rihanna​, voz derramada sobre acordes e arpejos em teclados tão líquidos que quase se desfazem em fundo. É isso que explica passarmos de um Motomami que elimina qualquer distância de segurança em relação a M.I.A., passa depois de raspão pelo esquecível reggaeton de Diablo, e acaba a aterrar num Delirio de grandeza que é um inesperado e sublime bolero que Rosalía aborda como se vestisse a pele de uma Édith Piaf largada num karaoke de Havana (os metais, propositadamente atirados para o fundo, parecem sugerir que canta por cima de um gira-discos onde gira um álbum dos anos 50).

E quanto mais se peneira Motomami mais se torna evidente que as explorações de modernidade aplicadas ao flamenco em que Los Ángeles assentava e El Mal Querer abordava com uma imensa inventividade e ousadia, agora quase desaparecem de cena. Sobra Bulerías, fazendo questão de não ser engolido por tudo o resto, mas esta excelente variação, em que a voz está em Sevilha mas a percussão mais facilmente em Bogotá, custa a sobressair entalada entre o certeiro single La fama, dueto com The Weeknd cantado sobre uma bachata dominicana – e em que dá voz à fama, essa mala amante, demasiado traiçoeira e mais interessada em one night stands e menos em relações estáveis – e o assumido reggaetón de Chicken teriyaki.

O curioso é que praticamente abandonando o flamenco e reforçando uma postura de pop global que não se demora por Espanha mais do que uma visita a casa dos pais ou um fim-de-semana em airbnb, Rosalía não assina também aquilo que chegou a sugerir de mergulhar a fundo no mundo reggaetón. Na verdade, aquilo que se escuta em Motomami é mesmo a liberdade e o desejo cumprido de querer ser tudo ao mesmo tempo. E que só não a eleva a uma obra-prima não pelo defeito de contradição, mas por um par de temas, mais tímidos na sua transformação, trair o gesto e cortar, por vezes, o efeito de desconcerto que é a arma mais sedutora e conseguida de Motomami.

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