Os N.E.R.D. precisam de amigos

São como aqueles casais que, ao fim de uns anos, funcionam em contextos sociais mas deixam de ter assunto a dois.

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Hoje em dia, os N.E.R.D. parecem só se justificar quando estão em papel de Neptunes: a pensar nos outros

Nos anos imediatamente antes e imediatamente depois da passagem de milénio, o nome The Neptunes era quase sinónimo de uma produção da pop ao hip-hop norte-americanos capaz de atirar canções e álbuns para o topo da escala de vendas e de popularidade.  Kelis, Jay-Z, Justin Timberlake, Britney Spears ou Nelly, quem quer que conseguisse angariar os seus serviços arriscava-se a ver a agenda dos meses seguintes saturada com solicitações para concertos, presenças na televisão, entrevistas e todo o género de encontros com fãs. Ter Pharrell Williams e Chad Hugo nas cadeiras de produtores tinha uma aura de precisão matemática: era tão certo sair das suas mãos uma canção peganhenta, daquelas que se agarram aos ouvidos e ao corpo, daquelas que não dão descanso e teimam em acompanhar as mais distraídas acções quotidianas (de atravessar na passadeira a lavar a loiça), quanto o quadrado da hipotenusa ser igual à soma dos quadrados dos catetos.

Ora a formação dos N.E.R.D. (acrónimo de No-one Ever Really Dies, título do novo álbum) surgiu em paralelo ao trabalho dos Neptunes, numa exploração da mesma linguagem que Williams e Hugo punham ao serviço dos outros, mas afunilando um pouco mais em proveito próprio. Ou seja, a imagem de marca dos Neptunes, uma marca d’água que era feita de um encontro entre hip-hop num som cru, batidas descarnadas, maquinais e repetitivas, que semeavam uma espécie de hipnose auxiliada por baixos gordos e mais um ou dois instrumentos reais ou samplados (teclados ou objectos mais exóticos que sugeriam uma vaga origem africana ou oriental), era encimada nos N.E.R.D. por guitarras que garantiam mais uma demão de energia e distorção rock.

A fórmula revelou-se certeira em In Search of… (2002) e sobretudo em Fly or Die (2004, o álbum das magnéticas She wants to move e Don’t worry about it), auge do tom infeccioso que os dois – acompanhados por Shay Haley, quando nos N.E.R.D. – sempre souberam emprestar ao material em que metem as mãos. Anos depois, Seeing Sounds (2008) ainda conservava alguma dessa qualidade incandescente dos primeiros registos, mas deixava no ar a clara impressão de que Fly or Die não se repetiria; Nothing (2010) já parecia disco caricatural, os N.E.R.D. a tentarem ser os N.E.R.D. e não a fazer simplesmente o que lhes apetecia – como antes.

No_Over Ever Really Dies chegou no final de 2017, cavando um enorme fosso temporal na discografia, coincidente com a ascensão de Pharrell a solo, mas também com a quase saída de cena dos Neptunes. Um fosso de sete anos que nos diz muito da alteração do estatuto: antes os Neptures eram chamados a abrilhantar e a emprestar a sua magia aos discos de terceiros; agora, os N.E.R.D., outrora grito de autossuficiência, passaram a chamar Rihanna, Kendrick Lamar, Future, Gucci Mane, André 3000, M.I.A. ou Ed Sheeran para valorizar as suas canções.

E o que é mais difícil de encaixar é que, nos poucos temas que não contam com convidados, os três N.E.R.D. parecem não saber o que fazer das suas composições, como se apenas a perspectiva de escrever para alguém os conseguisse salvar de estarem a um pequeno passo da vulgaridade. São como aqueles casais que, ao fim de uns anos, funcionam em contextos sociais mas deixam de ter assunto a dois. Felizmente, como quase nunca os encontramos a sós, o seu registo mais habitual em Lemon, Deep down body thurst e Don’t don’t do it não desmerece o melhor passado do grupo, 1000 chega-se aos deslizes arábicos com uma destreza invejável, Voilà e ESP revelam-se excelentes canções pop e Rollinem 7s é um funk obsessivo que assenta na perfeição a André ‘Outkast’ 3000. Ou seja, hoje em dia, os N.E.R.D. parecem só se justificar quando estão em papel de Neptunes: a pensar nos outros.

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