O putsch de Putin e as incertezas da conjuntura

O tabuleiro atual é muito mais complexo e intrincado que o superado tensionamento bipolar da Guerra Fria.


Com olhos de quem viu e viveu o drama humano e os graves problemas de sua época, a sabedoria superior de Lord Acton bem observou que “despotic power is always accompanied by corruption of morality”. Tal clássica sentença política se prova nas horas amargas de uma humanidade errante. A civilização e o avanço institucional da ordem e liberdade variam à luz das possibilidades do desenvolvimento histórico, sempre trazendo consigo o germe da impotência ou da decadência circunstancial. Por assim ser, a inconstância dinâmica e a variância de perspectivas são traços obrigatórios nas lógicas do poder.

As tiranias, por força de um artificial estado de equilíbrio, reduzem temporariamente as equações do possível, controlando a dissidência de interesses sobre violento tripé de dominação: medo, mortes e impunidade oficial. Mais do que a nociva corrupção moral, o despotismo traz em si a própria banalização da vida. E, de banalidades em banalidades, através do redemoinho impune de medos sociais generalizados, o apelo à morte se transforma em moeda central do autoritarismo irracional. Não há totalitarismo sem extermínio da razão crítica.

Isso não significa, todavia, que governos tiranos sejam incapazes de produzir líderes capazes. Sem cortinas, a crueza ilimitada dos instrumentos de poder pode possibilitar inclusive maior desenvoltura sensorial para a execução da capacidade decisória. Acontece que quem um dia foi ditador jamais será um democrata. Aliás, todo poder tirânico é intrinsicamente frágil, pois geneticamente desconfiado. E, onde não há confiança, só resta a submissão. O problema é que a insubmissão é a característica das inteligências livres que – com estratégia, tato e perícia – podem mudar a ordem estabelecida. Daí, o histórico recurso a violências contra a ousadia intelectiva insurgente.

Em palestra seminal de 1963, a inteligência poliédrica de Henry Kissinger, ao analisar o problema da conjuntura na política internacional, bem pontuou que o processo de decisão “requer capacidade de projetar além do conhecido. E quando se está no reino do novo, chega-se ao dilema de que há realmente muito pouco para guiar o policy maker, exceto as convicções que ele traz consigo”; indo adiante, externou que a busca de provas demonstráveis pode fazer do estadista mero “prisioneiro dos eventos”. Nos caminhos do possível, a liderança requer, assim, o exercício do ato moral de decidir entre névoas de incompletude que se dissiparão por gestos de pensamento crítico, intuição, acertos e fracassos. No dizer de Kissinger, “lidar com problemas de tamanha ambiguidade pressupõe, acima de tudo, um ato moral: a disposição de correr riscos por conhecimentos parciais e uma aplicação menos perfeita dos próprios princípios”, sendo o absolutismo das certezas uma “receita para a inação”.

Ora, o protagonismo histórico não aceita o papel de refém das circunstâncias. A ironia é que no ímpeto da coragem pode estar a semente da derrota. Entre o sim e o não do destino, um comando foi executado na engrenagem do mundo. Para os amantes da Guerra Fria, o tabuleiro atual é muito mais complexo e intrincado que o superado tensionamento bipolar. Capacidade bélica segue sendo fundamental, mas há inúmeras armas tecnológicas devastadoras que estouram silenciosamente entre rastros ao pó. O embate americano com a China segue esse roteiro; as pulsões em Taiwan e suas decorrências institucionais serão indicativas das novas lógicas de conformação. Lá do Kremlin, Putin olhou para o Ocidente, pensou não ter visto ninguém e avançou cavalos de mármore no xadrez geopolítico. Zelensky, com peças de madeira, soube suportar com destreza. Contrariando expectativas, o tempo passa e o custo russo aumenta. Por sua vez, o bloco europeu tem surpreendido por sua ação coordenada, aparentando recuperar capacidade orgânica para, quiçá, melhor gerir suas assimetrias internas em melhores rotas de integração.

Por tudo, impossível antecipar como será o fim. Mas a História ensina que o jogo é sempre maior que o jogador. De onde, então, virá o xeque? Ou será que apenas algumas peças mudarão rapidamente de mão? Nas incertezas do futuro, as possibilidades que fazem a vida acontecer. Tanto para o bem, como para o mal. A grande dúvida é quem irá liderar o processo em um mundo despido da hegemonia de poder unilateral. Com a sorte da ação correta decidida, poderemos chegar a algum equilíbrio virtuoso. Do contrário, é a civilização – como a conhecemos – que está em risco.

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