O mundo de Kissinger

Henry Kissinger é uma das figuras de proa da diplomacia mundial e ficará na história graças ao papel que desempenhou no fim da guerra do Vietname, que lhe valeu o Nobel da Paz em 1973; e nas intervenções dos Estados Unidos na América Latina, na primeira metade da conturbada década de 70, ou na aproximação diplomática à China. Na entrevista recentemente transmitida na televisão portuguesa pôde constatar-se que o antigo secretário de Estado de Nixon tem de facto uma grande intuição quanto ao funcionamento de alguns sistemas políticos e quanto ao funcionamento da diplomacia mundial. Foi interessante ouvi-lo dizer que a economia chinesa estava a sair mais rapidamente da estatização, em comparação com a economia russa, ou lembrar o seu entrevistador que o Governo chinês não é uma aberração exterior à sociedade e que se poderá adaptar no futuro. Curiosamente, as ideias de Kissinger quanto à China são bem mais "realistas" do que aquelas que defende quanto a outras partes do Mundo, sobre as quais gosta de transmitir algumas ideias moralistas. Talvez o que tenha feito mais falta na entrevista em causa tenha sido colocar Kissinger perante esta dicotomia entre a política externa realista e a moralista ou de valores. Henry Kissinger é um homem de contradições, com algumas falhas importantes no seu pensamento sobre a política internacional. A entrevista que Mário Soares lhe fez, todavia, decorreu com excessiva bonomia para se perceberem bem essas falhas. Por forma a ultrapassar essa limitação, é de todo o interesse ler o livro "Diplomacia" (Gradiva, 1996) de Kissinger. A grande qualidade desta extensa obra, que representa um esforço invejável, reside no facto de colocar as relações internacionais contemporâneas à luz dos principais acontecimentos históricos, desde a Paz de Vestfália de 1648. Nesta data foram celebrados tratados entre as principais potências europeias (a Áustria, a Suécia, a França, os Países Baixos e os estados alemães) que cercearam os desígnios hegemónicos dos Habsburgos austríacos e espanhóis, permitindo a sobrevivência da Europa dos Estados. Apesar das novas tentativas hegemónicas de Luís XIV e de Napoleão, a verdade é que a Europa manteve uma das características que a distingue de outros continentes, que é a da grande capacidade de sobrevivência dos Estados independentes que acabaram por chegar aos nossos dias. De tudo isto dá conta a obra de Henry Kissinger, sendo um manual de história das relações internacionais.O problema com o livro do famoso diplomata é que resolve certas dificuldades de interpretação histórica com alguma ligeireza. Por exemplo, Kissinger vê na Alemanha um "provincianismo do qual não conseguia libertar-se" até à unificação de 1871 e, quando finalmente o conseguiu sob Bismark, o país "tinha tão pouca experiência na definição dos seus interesses nacionais, o que deu origem a muitas das piores tragédias do século XX". Esta interpretação é um pouco simplista. Seria mais interessante situar a luta pela hegemonia europeia por parte da Alemanha no contexto das tentativas anteriores da Áustria ou da França. Isso obrigar-nos-ia a pensar em factores mais importantes do que uma eventual falta de experiência nacional. As ideias de Henry Kissinger sobre a história mais recente das relações internacionais oscilam de forma curiosa entre concepções diferentes das relações internacionais, mostrando que ele é um homem essencialmente pragmático. Havia aqui um excelente campo para explorar contradições, mas não foi utilizado na entrevista em causa. Por exemplo, Kissinger defende no seu livro que a decisão de Kennedy de entrar no Vietname, em 1961, resultou de uma "abordagem 'wilsoniana' da política externa", com a qual, aliás, concorda. O autor refere-se naturalmente à doutrina que o Presidente Wilson levou para a conferência de Paris de 1919, segundo a qual a defesa dos princípios do direito universal ou da integridade nacional é mais importante na política externa do que a preservação ou restabelecimento dos equilíbrios de poder entre Estados.Note-se que a luta pelo equilíbrio de poder, também rotulada de "raison d'État" ou de "realpolitik", foi precisamente a chave do êxito dos entendimentos na Europa desde Vestfália, contra as tentativas de controle hegemónico. Acresce que, caso esse princípio tivesse vencido no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, provavelmente a Europa Central não teria sido dividida como foi em Paris, evitando alguns dos problemas que se prolongaram pela segunda metade do século XX.Mas a questão mais interessante relativamente à política externa "wilsoniana", que deveria ser colocada a Kissinger, vai no sentido de se perceber se essa política não é precisamente aquela que mais vantagens traz aos Estados Unidos num eventual caminho para o poder hegemónico à escala mundial. A defesa de princípios abstractos permite actuar em qualquer parte do mundo onde se veja perigo para a democracia ou para outros valores. Para além disso, trata-se de uma política externa extremista, como aliás lembra o próprio Kissinger, uma vez que, em questões de princípios, não pode haver meias vitórias e mais dificilmente se estabelecem soluções de compromisso.A queda do muro de Berlim retirou importância à luta pelo comunismo e, em consequência, a diplomacia "wilsoniana" ficou abalada. Na questão do alargamento da NATO, por exemplo, Kissinger é agora mais "realista", defendendo a integração plena dos países da Europa Central, deixando de fora a Rússia. Esta opção é contrária à adoptada por Clinton com a sua Parceria para a Paz, que inclui a Rússia e as outras repúblicas que pertenceram à União Soviética. Curiosamente, apesar das diferenças de perspectiva, mais uma vez Kissinger escolheria a estratégia de maior confrontação que seria a de separar a Rússia do resto da Europa.

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