O falocentrismo da guerra

Este é um conflito que denuncia a disputa pelo poder, mas também a relação entre “as masculinidades hegemónicas” e a guerra.


Em meio às consequências de uma crise pandémica que vitimou milhares de pessoas em todo o mundo e alterou as nossas formas de vida, o mundo agora confronta-se com mais uma crise “às portas” da Europa. Mas o que esta guerra entre a Rússia e a Ucrânia evidencia, que tantas outras guerras e crises humanitárias que marcam a nossa história recente não conseguiram evidenciar de forma tão clara? Esta é uma guerra entre pólos hegemónicos que ambos resgatam o ideal imperialista e falocêntrico dos extremos mais ricos do mundo. É um conflito que denuncia a disputa pelo poder, mas também a relação entre “as masculinidades hegemónicas” e a guerra.

O conflito entre Ucrânia e Rússia, que rapidamente mobilizou toda Europa e Estados Unidos, torna nítido o resgate da figura do herói, um disfarce ideal para àqueles que verdadeiramente lucram com a guerra armada. É importante salientar que para alguns essa construção de imagem não se deu do dia para noite. Afinal, quem não se lembra do marketing preparado há 22 anos em cima de Putin como símbolo da masculinidade? A Internet está cheia de memes do Presidente russo montando num urso… Putin gosta de se perfilar como soldado, como marinheiro, como piloto, desportista, judoca cinturão negro. Além disso naturaliza a ideia de homem forte com sua mulher, o que levou até as últimas consequências quando propôs a despenalização da violência doméstica na Rússia. Detentor de um dos maiores arsenais nucleares do mundo, Putin tenta reacender o antigo ideal russo de poder na forma de um neo-czarismo imperial, que só encontrou seu fim com a Revolução Bolchevique.

Do outro lado da mesma moeda, a figura do herói nacional é explorada na construção da imagem do líder ucraniano Zelensky de forma estratégica. Em páginas de notícias de grande circulação pode-se ler: “Volodimir Zelensky, o novo herói do Ocidente: contra tudo e contra todos”. A ideia do homem viril de uniforme e com armas em punho a defender seu povo invade redes sociais e páginas de notícias. Atualizado às novas tendências identitárias liberais, também emerge como um líder ao mesmo tempo sensível, com um discurso emotivo, mas que clama pela solidariedade armamentista dos EUA e da NATO, ao mesmo tempo que luta pela paz.

Nos noticiários em meio à comoção vê-se a retomada da naturalização do discurso bélico de defesa que lucra milhões com as guerras. Afinal, confrontos armados são realmente um fracasso? Não para as maiores empresas da indústria militar e seus acionistas. Segundo fontes do The Intercept, só na Guerra do Afeganistão ações da indústria bélica dos EUA chegaram a superar o desempenho do mercado de ações em 58% durante o conflito.

Os nacionalismos imperialistas encontram sua justificação falocêntrica de várias formas, seja no ideal da mãe Rússia desprotegida a ser defendida militarmente pelos seus líderes; ou nas imagens sempre muito bem selecionadas das refugiadas ucranianas belas e brancas dignas de compaixão. Em contrapartida, o arsenal bélico também se reafirma nas imagens constantemente instrumentalizadas nos media e redes sociais de mulheres ucranianas, a maioria muito jovens, vestidas com uniforme de guerra e carregando armas, como se pode ver no perfil de Instagram da ex-miss Ucrânia Anastasiia Lenna. Maquiada, Anastasiia mais parece ter saído de um editorial de moda.

É um facto que a imagem das mulheres ligada ao nacionalismo e mesmo ao imperialismo não é novidade: Quem não lembra da figura de Margaret Thatcher na conquista do território das Falkland/Malvinas, a recuperação do arquipélago pelo Reino Unido e a morte de 649 soldados argentinos, que garantiu ao governo conservador de Thatcher a vitória nas eleições de 1983? Figuras femininas emblemáticas, como Catarina A Grande, poderosa imperatriz russa do século XVIII; ou a rainha Victoria, símbolo do apogeu do império britânico; ou mesmo Condoleezza Rice e sua atuação como secretária de Estado do governo Bush nos Estados Unidos na guerra contra o Iraque demonstram que o falocentrismo bélico que norteia as democracias contemporâneas não escolhe género, o instrumentaliza.

A “falta de masculinidade” dos homens russos e ucranianos que são obrigados a sacrificar suas vidas é um bom exemplo do contraste. Os inúmeros homens ucranianos que preferem fugir que morrer pela adesão à NATO, mas são impedidos de abandonar o país, bem como os relatos dos jovens que fazem de tudo para escapar ao combate pela “honra” da Rússia e praticam sabotagem dos próprios tanques são um bom exemplo de que são exatamente essa falta de “coragem” e falta de “honra” masculina que são o caminho da Paz.

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