Jus in bello

A nova ordem mundial que irá emergir neste pós-guerra — que deveria começar já amanhã — terá de chegar a acordo quanto à importância e centralidade do direito humanitário internacional. Fora pequenas adendas aqui e ali, o jus in bello está escrito.

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Habitante de Markhalivka, arredores de Kiev, no meio de destroços de casas depois de um bombardeamento russo este sábado, que causou a morte a seis pessoas Anastasia Vlasova/Getty Images

De acordo com o direito humanitário internacional, jus in bello (direito na guerra) é o dever por parte dos beligerantes envolvidos num conflito armado de distinguir entre combatentes e população civil. Para além desta distinção, o direito internacional invoca também a proporcionalidade: os beligerantes devem certificar-se de que os danos causados a civis ou bens civis não são excessivos em relação à vantagem militar pretendida. Assim, na guerra devem-se combater apenas soldados inimigos e destruir apenas objectivos militares; recolher e cuidar os feridos, sejam de que lado forem; não atacar o inimigo a partir do momento em que este se rende; não matar, torturar ou abusar dos prisioneiros de guerra; tratar todos os civis de forma compassiva e protetora; não se envolver em violações ou pilhagens; não usar armas que matam de forma indiferenciada, resultando no sofrimento acrescido das populações civis ou de sofrimento desnecessário dos militares inimigos.

Os princípios do direito humanitário internacional estão contidos na Convenção de Genebra, criada em 1949, hoje assinada por todos os países do mundo, incluindo a Rússia. O protocolo inicial foi sendo revisto e ampliado o seu espectro regulador: em 2010 é criada a Convenção sobre Armas de Fragmentação, que as proíbe. Estas cluster bombs libertam, a uma velocidade letal, entre cem a mil fragmentos que voam giratoriamente, matando e ferindo de forma indiscriminada. Alguns destes fragmentos são de explosão tardia, o que faz com que continuem a ferir civis muito depois dos conflitos terminados.

Durante dez anos existiram centenas de munições de fragmentação por explodir nas zonas rurais da Sérvia, largadas pela NATO durante o bombardeamento de 1999. A Convenção que propõe a eliminação de munições de fragmentos é subscrita por 107 países, como a França, Alemanha, Reino Unido, Países Baixos, Portugal, mas tem a oposição de vários outros, entre os quais, Israel, Estados Unidos, Índia, China, Rússia e Ucrânia.

Em 2006, Barack Obama votou a favor da eliminação das cluster bombs, mas tanto o seu opositor republicano John McCain, como a sua rival democrata Hillary Clinton votaram contra. A Human Rights Watch, em 2017, alerta: “Depois de gastar centenas de milhões de dólares a pesquisar alternativas às cluster bombs, os EUA declararam não ter conseguido produzir munições de fragmentação ‘seguras’, pelo que persistem em utilizar munições ‘inseguras'”. Vários países continuam a fabricar bombas de fragmentação, como Israel, que fornece as necessidades do mercado bélico, mas aparentemente nenhum terá investido tanto na sua produção como a Rússia.

Outro tipo de munição que cai no âmbito das “armas que podem causar sofrimento desnecessário” da Convenção de Genebra, são as bombas de vácuo, também conhecidas como armas termobáricas. Criadas em meados do século XX, começaram por ser usadas pelos EUA no Vietname, Laos e Cambodja e a seguir no Iraque e Afeganistão. Os russos usaram-nas em grande escala na segunda guerra da Tchetchénia.

Estas bombas usam o oxigénio à sua volta para explodir numa onda de calor que chega a atingir 3000 graus celsius, o que significa que têm o potencial de pulverizar corpos humanos. Dependendo da distância relativa ao epicentro, a explosão trucida e queima, causando rupturas pulmonares e auditivas irreversíveis e, frequentemente, cegueira. Na escala de potência destrutiva, a bomba termobárica situa-se imediatamente antes da bomba nuclear.

Suspeita-se que estas duas bombas estejam a ser usadas na invasão da Ucrânia, o que, a confirmar-se, acentua o lado desalinhado e sujo desta guerra. O primeiro princípio de jus in bello, o da distinção entre beligerantes e população civil, está comprometido pelas circunstâncias no terreno. O Exército russo vê-se “obrigado” a combater contra civis, porque a população está empenhada em defender-se por força das armas — é parte das forças beligerantes.

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Prédio de habitação atingido pelas forças russas em Kiev, no terceiro dia do conflito Diego Herrera/Europa Press via Getty Images

Todos os soldados do mundo, incluindo os russos, foram treinados para proteger a população civil. É natural que nos cheguem imagens de tanques russos que batem em retirada quando confrontados por um grupo de civis armados. Deve ser extraordinariamente difícil e deprimente encontrarem-se perante a tarefa de assumir toda a população vizinha como o inimigo a abater.

Os ucranianos, por seu lado, abandonam de um dia para o outro as suas vidas, separam-se das famílias, fazem rápidos treinos sobre armas, munições e táticas de guerra. Morrem por um azar histórico e geográfico às mãos de conflitos globais — mas têm uma causa, que os torna bravos e destemidos.

Os soldados russos que morreram e vão morrer neste confronto, muitos deles com 20 e poucos anos, merecem enorme compaixão. Três dias depois do início da guerra, o Ministério do Interior ucraniano começou a emitir apelos para que os familiares dos soldados russos identificassem os feridos e mortos em combate. A iniciativa foi rapidamente bloqueada pela Procuradoria-Geral da Rússia. Nunca saberemos nada sobre as baixas entre os soldados russos — morrem sem número, sem nome ou glória.

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Soldados russos capturados pelas forças ucranianas nos arredores de Kiev Embassy of Ukraine in Ankara/Anadolu Agency/Getty Images

Se a invasão da Ucrânia for vitoriosa, quantos vivas do Exército russo iremos ouvir? É uma guerra de Inverno, triste e fria.

Este conflito terá um fim e, durante todo o tempo que durar, o Ocidente vai a uma só voz gritar que se estão a cometer crimes de guerra sempre que a Rússia usar armas condenadas pela Convenção de Genebra. É bom que assim seja, mas importa sublinhar o facto de muitos dos países que fazem parte deste coro solidário estarem em infracção com a Convenção que invocam, ou seja, fabricam e lançam as mesmíssimas bombas sempre que a ocasião se apresenta.

A nova ordem mundial que irá emergir neste pós-guerra — que deveria começar já amanhã — terá de chegar a acordo quanto à importância e centralidade do direito humanitário internacional. Fora pequenas adendas aqui e ali, o jus in bello está escrito: são textos vistos, revistos e acrescentados desde a década de 1950; foram redigidos com atenção à letra miúda da lei e às suas interpretações, tendo sempre em conta o bem estar humano. São protocolos sólidos, feitos do melhor que em política comum se tem vindo a produzir. Basta cumpri-los, à regra, com rigor e aprumo democráticos. Aí chegados, sim, poderemos estar, em consciência e com toda a legitimidade, contra a sujidade da guerra dos outros.

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