Tribunal Penal Internacional vai investigar crimes de guerra russos na Ucrânia

O procurador-geral Karim Khan promete abrir investigações “independentes e objectivas” tão rapidamente quanto possível. Mas não será fácil levar Putin ao Tribunal de Haia.

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Um edifício em ruínas na Ucrânia, na sequência de um ataque russo SERGEY KOZLOV/epa

Vladimir Putin poderá ser acusado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de fomentar crimes de guerra e crimes contra a humanidade na Ucrânia, quer no passado recente, quer na invasão russa agora em curso. Karim Khan, procurador-geral do TPI, em Haia, anunciou esta segunda-feira que decidiu “abrir uma investigação à situação na Ucrânia o mais rapidamente possível”.

O TPI já promovera uma investigação preliminar, com base em alegações de que estariam a ser cometidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade no conflito armado que, desde 2014, opõe na região de Donbass, no leste do país, o governo ucraniano e forças separatistas apoiadas pela Rússia, que nesse mesmo ano invadiu e anexou a Crimeia. As conclusões a que chegaram os observadores do TPI confirmam que “existe uma base razoável” para se acreditar nas alegações de “crimes de guerra e crimes contra a humanidade” na Ucrânia, diz Khan, que, “perante a expansão do conflito nestes últimos dias”, quer agora investigar “quaisquer novas alegações de crimes que que caiam na alçada do TPI e que tenham sido cometidos por qualquer uma das partes envolvidas no conflito em qualquer parte do território” do país.

Khan anunciou ainda que pedirá aos estados-membros do TPI e à comunidade internacional para contribuírem com verbas e recursos humanos, já que, observou, “a importância e a urgência da missão” que o TPI tem pela frente “são demasiado sérias para ficarem reféns da falta de meios”. E solicita ainda a todos os que tenham “informações relevante sobre eventuais crimes de guerra na Ucrânia” para as fazerem chegar ao seu gabinete.

Embora nem a Rússia nem a Ucrânia tenham ratificado o Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional em 1998, o que à partida colocaria ambos os países fora da sua alçada, o tratado prevê que o TPI tenha jurisdição quando um país que não o integre aceite a autoridade do tribunal para os crimes que estiverem em causa, apresentando uma declaração formal nesse sentido. E foi justamente isso que a Ucrânia fez, primeiro através de uma declaração na qual aceitava a jurisdição do TPI para investigar e julgar alegados crimes cometidos no seu território no início do conflito com as forças separatistas russas, entre Novembro de 2013 e Fevereiro de 2014, e depois através de uma segunda declaração enviada em Setembro de 2015, e de “duração indefinida”, que autoriza o Tribunal de Haia a “identificar, processar e julgar os perpetradores e cúmplices de actos [criminosos] cometidos em território ucraniano a partir de 20 de Fevereiro de 2014”.

Prometendo “investigações independentes e objectivas”, o procurador Khan diz ter já pedido à sua equipa que aproveite todas as oportunidades para obter e preservar provas e explicou que a abertura do processo poderia ser agilizada se um país membro do TPI pedisse oficialmente ao seu gabinete que averiguasse a situação na Ucrânia, o que a Lituânia já anunciou esta segunda-feira que irá fazer. A ministra lituana da Justiça, Evelina Dobrovolska, disse ter falado ao telefone com o seu homólogo ucraniano, Denys Maliuska, informando-o de que, ao abrigo do Estatuto de Roma, o seu governo irá “apelar ao procurador do Tribunal de Haia”. E a primeira-ministra deste país báltico, Ingrida Simonyte, afirmou esta segunda-feira ao jornal americano Washington Post: “O que Putin está a fazer é assassinar, não é outra coisa, e espero que ele seja julgado em Haia.”

A decisão agora anunciada pelo TPI vem na sequência de diversas denúncias de crimes de guerra que estarão a ser cometidos pelas forças russas nesta invasão. O embaixador ucraniano na ONU, Sergiy Kyslytsya, garante que os soldados de Putin estão a atacar civis e que entre os seus alvos se contam hospitais, escolas e orfanatos. O embaixador apelou também à punição do líder bielorrusso Alexander Lukashenko, acusando-o de ataques à Ucrânia e de ter oferecido o seu território como base para a invasão russa.

Já na sexta-feira, o ministro ucraniano dos Negócios Estrangeiros, Dmytro Kuleba, acusara as tropas russas de terem atacado um jardim de infância e um orfanato. “São crimes de guerra e violações do Estatuto de Roma”, escreve Kuleba no Twitter, acrescentando que “estes e outros factos estão a ser coligidos e serão imediatamente enviados para Haia”. No mesmo dia, o ministro da Saúde Viktor Liashko relatara que tanques russos tinham aberto fogo contra ambulâncias nas cidades de Chernihiv e Zaporijchia.

Putin em Haia?

Putin vem sendo acusado de violações dos direitos humanos praticamente desde que chegou ao poder, em 1999 e liderou, já como primeiro-ministro, a repressão do separatismo tchecheno. Quer nesta ocasião, quer depois em 2008, no conflito com a Geórgia em torno das províncias da Ossétia do Sul e da Abkházia, as tropas russas foram acusadas de atacar alvos civis. Em 2016, o TPI abriu, aliás, uma investigação de eventuais crimes de guerra cometidos na Geórgia em 2008.

Mas independentemente da solidez das provas de crimes que o TPI venha a recolher no contexto da actual invasão da Ucrânia, a possibilidade de Putin vir a sentar-se no banco dos réus em Haia, como aconteceu com o ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, parece, pelo menos nesta fase, bastante remota. Desde logo porque a jurisdição do TPI só abrange crimes cometidos ocorridos no território de um país-membro, ou que tenham sido cometidos por um cidadão de um desses países. Além da já referida situação em que um país que não é parte do TPI aceita expressamente a sua autoridade, a única outra excepção prevista no tratado implicaria que fosse a própria ONU a levar a questão ao tribunal de Haia. Um cenário virtualmente impossível neste caso, uma vez que a Rússia, juntamente com os Estados Unidos, a China, a França e o Reino Unido, é um dos cinco membros permanentes, e dotados de poder de veto, no Conselho da Segurança.

Mas se Putin vier a ser arredado do poder, não é teoricamente impossível que possa vir a ser detido e posteriormente julgado em Haia. A procuradora-geral ucraniana, Iryna Venediktova, mostra-se confiante de que será mesmo esse o seu destino. A agência ucraniana Interfax cita declarações suas dirigidas ao líder russo: “Cidadão Putin: habitualmente respeito a presunção de inocência, mas não no seu caso. Provaremos num julgamento justo que você é um assassino e o principal criminoso de guerra do século XXI. Eu, como procuradora-geral do Estado soberano da Ucrânia, e no interior das suas fronteiras, que não são suas, declaro-lhe isto oficialmente”, afirma, concluindo: “E virá o tempo em que lho direi em Haia, cara a cara.”

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