Há cada vez mais competições canceladas por força das alterações climáticas

Milhares de jogos de futebol cancelados todos os anos, recintos em risco de inundação, provas de atletismo adiadas, modalidades de Inverno ameaçadas. A tecnologia tem ajudado a maquilhar parte do problema, mas, a este ritmo, o futuro será cada vez mais sombrio.

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O árbitro búlgaro Stanislav Todorov interrompe o jogo da Liga dos Campeões entre o Dínamo Zagreb e o Dínamo Kiev devido a uma tempestade de neve,O árbitro búlgaro Stanislav Todorov interrompe o jogo da Liga dos Campeões entre o Dínamo Zagreb e o Dínamo Kiev devido a uma tempestade de neve Antonio Broni/Reuters,Antonio Broni/Reuters

Aquilo que aconteceu há sensivelmente duas semanas com o Market Weighton FC, no condado britânico de Yorkshire é sintomático: uma inundação deixou o relvado debaixo de 2,30 metros de água, praticamente apenas com a barra das balizas de fora. Não é que o fenómeno seja uma absoluta novidade numa região de Inglaterra que desde sempre conviveu com cheias, mas está a ocorrer com mais frequência e com intensidade redobrada. Se alargarmos o raio a todo o território do Reino Unido, percebemos melhor a dimensão do problema – um estudo da Climate Coalition aponta para mais de 62.000 jogos de futebol amador cancelados ou adiados todos os anos por força das alterações climáticas.

O diagnóstico não se faz apenas de números, mas é inegável que ajudam a ilustrar o impacto da natureza numa modalidade de carácter universal e exposta aos caprichos meteorológicos. Num inquérito que reuniu mais de 1200 pessoas ligadas à modalidade, 58% consideram que o efeito negativo do clima piorou nos últimos cinco anos e 80% dos jogadores admitem que jogam hoje com menos frequência do que antes. De resto, relativamente a 2016, o total de jogos cancelados pelo mau tempo disparou 42%.

Mais do que motivarem uma reflexão, estes dados devem incitar à acção. Numa investigação do Climate Impact Lab em parceria com a marca de equipamentos desportivos Nike, chegou-se à conclusão de que, em média, os futebolistas enfrentaram em 2020 mais 20% de dias muito quentes do que em 1990. Se nada for feito para travar esta tendência, dentro de 30 anos esta margem poderá situar-se no intervalo entre 42% e 70%. Ilustrativo. E assustador ao mesmo tempo.

“Como será jogar futebol em África dentro de dez anos? Poderá já não ser possível”, alertou recentemente David Goldblatt, académico britânico e autor do relatório Playing against the clock. A realidade do continente africano está longe de ser unidimensional, mas há vários países que se aproximam vertiginosamente da barreira dos 300 dias por ano com mais de 32 graus centígrados. Em traços largos, isto significa pressão adicional contínua sobre o corpo humano e menor capacidade de recuperação do esforço.

Noutras latitudes, procura-se minimizar o problema com recurso à tecnologia, mas essa via será mais um paliativo do que uma visão de futuro. O exemplo mais gritante é mesmo o Campeonato do Mundo de 2022, que vai ser disputado fora da habitual janela de Verão para minorar o efeito das elevadíssimas temperaturas que se abatem sobre o Qatar. Ainda assim, e mesmo com o torneio previsto para Novembro, os termómetros rondam habitualmente os 40 graus e a empreitada é colossal. A todos os níveis.

Para tornar viável a competição, o país derramou milhares de milhões de euros sobre as infra-estruturas necessárias, a começar pelos próprios estádios, que serão climatizados. Mas esse está longe de ser o único desafio: para que a relva (importada dos EUA) cresça num ambiente tão árido e se mantenha saudável até à data prevista, cada relvado precisa de 10 mil litros por dia de água dessanilizada, no Inverno, e 50 mil litros diários, no Verão, com os custos energéticos decorrentes do processo de depuração da água salgada.

Cada vez mais cancelamentos

O impacto do aumento global da temperatura no desporto não conhece fronteiras. E se, pela natureza da modalidade, disputada ao ar livre, o futebol está já a sofrer as consequências, não há nenhuma outra actividade de alto rendimento que possa pôr-se à margem destes efeitos. “Cada comunidade que tiver um recinto desportivo, seja um estádio ou pavilhão, vai acabar por ser afectada por esta alteração global do clima, seja na sequência de tempestades, mais precipitação, tornados, incêndios, secas”, alerta Allen Hershkowitz, conselheiro ambiental dos New York Yankees.

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Nos EUA, a discussão está mais acesa do que nunca. Se o nível da água do mar continuar a subir a este ritmo, recintos com o TD Garden, em Boston, o Citi Field, em Nova Iorque, o MetLife Stadium, em Nova Jérsia, o Petco Park, em San Diego, ou o Del Mar Racetrack, na Califórnia, serão vítimas de inundações. Isto, para já não falar das numerosas estruturas universitárias ou campos de golfe que ficam mais próximos da orla costeira.

De resto, têm sido muitas as competições adiadas nos últimos anos, em particular provas de atletismo prejudicadas pela qualidade do ar, na sequência de violentos incêndios na região (foi assim, por exemplo, com a meia-maratona de Berkeley, em 2018). “As corridas estão a ser canceladas a uma taxa muito mais elevada do que no passado”, observa a ultramaratonista americana Clare Gallagher.

A exposição prolongada a altas temperaturas é uma ameaça séria para o corpo humano e as longas distâncias na corrida são provas especialmente sensíveis. Através do projecto Breaking2, da Nike, que visou baixar da barreira das duas horas o recorde da maratona, concluiu-se que os melhores resultados foram obtidos com uma temperatura de 10 graus – com 20 graus, por exemplo, o tempo piora mais de três minutos entre os atletas de elite.

A forma como a organização dos eventos se tem adaptado às circunstâncias também é reveladora. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, o calor e a humidade excessivos obrigaram a antecipar o horário da maratona e a testar uma camada reflectora no piso do circuito, por forma a amenizar o aquecimento da estrada. Em certos eventos do calendário, como a canoagem, até uma máquina de produção de neve foi testada, na tentativa de baixar a temperatura e tornar a estadia mais suportável, também para os espectadores.

Olímpicos de Inverno em causa

Por falar em neve, a avalanche de problemas está igualmente a chegar em força aos desportos de Inverno, que nos últimos 30 anos viram decrescer em 7% o número de dias de qualidade para a prática de snowboard. E quem diz snowboard diz uma série de outras especialidades que dependem das baixas temperaturas para vingarem.

A britânica Lesley McKenna, com três participações olímpicas no currículo, fala em grandes alterações nos resorts onde tem vindo a treinar-se ao longo dos anos. “As mudanças são mesmo preocupantes, a vários níveis”, expôs ao jornal The Guardian. “A neve é muito menos consistente do que era quando comecei a carreira. Os planos têm de ser muito flexíveis, se quisermos usufruir dos melhores locais de treino.”

Em bom rigor, está a tornar-se cada vez mais difícil encontrar regiões com neve e gelo suficientes para acolherem eventos como os Jogos Olímpicos de Inverno. Se nada for feito para combater esta erosão contínua, no final do século apenas uma das últimas 21 cidades que já foram palco da competição estará em condições de a voltar a organizar. E basta lembrar que, na mais recente edição, em Pequim, o uso de neve artificial foi a regra, não a excepção.

Susan Dunklee, biatleta norte-americana, encara o problema com preocupação e considera que a indústria tem de encontrar soluções alternativas. Numa conferência organizada em Aspen, há cinco meses, sugeriu a realização de mais provas durante o Verão (com recurso a roller skis) e a eliminação de algumas ceras usadas nos esquis, por causa do impacto ambiental. Mesmo que isto venha a prejudicar o desempenho dos atletas.

Esse não é, porém, o maior ponto de interrogação que se levanta para Dunklee, que arrasta para a discussão uma questão de impacto maciço e transversal – a compatibilização da legião de adeptos com as emissões de carbono provocadas pelo transporte para as competições desportivas. “A principal peça do puzzle são as pessoas que se deslocam para assistir às provas. Como as convencemos a utilizarem meios mais sustentáveis? No longo prazo, teremos de pensar em formas de manter e aumentar a nossa base de fãs, enquanto os incentivamos a não viajarem”.

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