Um passeio no parque que entrou para a história

Eliud Kipchoge tornou-se no primeiro homem a baixar das duas horas na maratona, um feito financiado pelo homem mais rico do Reino Unido.

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Kipchoge, o primeiro abaixo das duas horas na maratona Reuters/LISI NIESNER
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Não entrará nos livros como recorde mundial, mas é um feito histórico. Eliud Kipchoge tornou-se neste sábado no primeiro homem a baixar das duas horas na maratona, cumprindo, em Viena, 42,195km em 1h59m40s, no que foi, basicamente, um passeio no parque em passo acelerado, quase sempre em linha recta e sem qualquer elevação, acompanhado por 41 “lebres” que o ajudaram a manter o ritmo. Começou exactamente às 8h15, terminou às 10h14m, empurrado pelo entusiasmo do público e a perspectiva de entrar para a história. Ou, como o próprio Kipchoge tinha dito no dia anterior (e voltaria a usar essa imagem), “chegar à Lua”.

Esta era uma maratona em que o objectivo não seria ganhar, mas chegar ao fim o mais depressa possível. O fundista queniano já tinha falhado uma primeira tentativa feita em 2017, no circuito de Monza, terminando 25 segundos depois das duas horas, o mais próximo que alguma vez alguém tinha chegado de quebrar uma das mais míticas barreiras do atletismo. Eram esses 25 segundos que Kipchoge iria tentar conquistar no Prater, o parque vienense que fica à beira do Danúbio.

A noite não tinha sido particularmente descansada. Kipchoge tinha passado o dia a receber telefonemas e mensagens de personalidades a desejarem-lhe sorte, mas isto não o ajudou nada. Deitou-se às 21h, acordou antes das 3h e já não conseguiu voltar a dormir. “Foi a pior altura. Não estava nada relaxado”, contaria o queniano. Depois, às 8h15, fez-se à estrada. Mas esta não iria ser uma corrida normal. Não havia adversários para bater. Só um ponto de partida, um ponto de chegada e um relógio a contar.

Mas Kipchoge não ia sozinho. Tinha à sua frente um carro que ia projectando com raios laser o ritmo da progressão, tinha homens em motorizadas que lhe levavam os líquidos para se hidratar durante a corrida e levava ao lado uma equipa de acólitos que o ajudavam a manter o ritmo. A cada 4,8 quilómetros entravam sete pares de pernas frescas, cinco deles à frente em formação V, mais dois atrás – os testes de aerodinâmica provaram que esta era disposição mais eficiente das “lebres” à volta de Kipchoge. Entre os recrutados para fazerem parte da história estava gente muito notável: Paul Chelimo, vice-campeão olímpico dos 5000m, Selemon Barega, vice-campeão mundial dos 5000m, Matthew Centrowitz, campeão olímpico dos 1500m, os três irmãos noruegueses, Henrik, Filip e Jakob Ingebrigtsen, ou Bernard Lagat, multimedalhado em várias competições.

O plano foi cumprido à risca. Kipchoge foi mecânico na sua passada, fazendo uma média de 2m50s por cada quilómetro – nunca fez acima de 2m52s. Fez a passagem a meio da maratona a 59m52s e as últimas centenas de metros ao sprint, deixando as “lebres” para trás antes de cortar a meta e cumprindo os mais de 42 quilómetros a uma velocidade média de 21,1km/h – foi, basicamente, um longo sprint, o equivalente a ter corrido de forma consecutiva 422 corridas de 100m em 17,08s cada uma. “Isto mostra que não há limites. Agora que consegui, estou à espera que mais gente chegue lá”, declarou o queniano.

Por não ser uma corrida competitiva, este tempo sub-duas horas não vale como recorde oficial da maratona. Mas Kipchoge não terá grandes problemas com isso já que é ele próprio o recordista oficial da maratona, uma marca de 2h01m39s feita em Berlim a 16 de Setembro de 2018, tendo, na altura, tirado mais de um minuto ao anterior máximo feito em 2014 (também em Berlim) pelo seu compatriota Dennis Kimetto (2h02m57s). Só para dar algum contexto histórico, o primeiro recorde oficial da maratona foi estabelecido pelo norte-americano Johnny Hayes em 1908, 2h55m18s, sendo que, durante três anos, o recordista masculino foi português – os 2h07m12s feitos por Carlos Lopes, em Roterdão, valeram como máximo mundial entre 1985 e 1988.

Dezassete milhões

Nada disto se fez, no entanto, apenas com a vontade de um homem em entrar para a história da humanidade. Toda a empreitada foi financiada por Jim Ratcliffe, o homem mais rico do Reino Unido e dono da petroquímica Ineos – que também patrocina a equipa de ciclismo anteriormente conhecida como Sky. Estima-se que Ratcliffe, um fervoroso pró-Brexit, tenha investido cerca de 17 milhões de euros para garantir o sucesso do que, essencialmente, foi uma experiência científica com uma componente desportiva. Nada foi deixado ao acaso. Até foram contratados stewards para varrerem do percurso as folhas que iam caindo das árvores do parque.

Para este feito histórico, que está a ser comparado à milha em menos de quatro minutos feita pela primeira vez por Roger Bannister, em 1954, também contribuiu a Nike, o gigante norte-americano de equipamento desportivo, que calçou Kipchoge com uma nova evolução do modelo Vaporfly – este modelo terá um custo a rondar os 270 euros. E a Nike bem precisa de boa publicidade depois da suspensão de Alberto Salazar, líder do Projecto Oregon, um centro de alto rendimento para atletas do meio-fundo e fundo financiado pela própria empresa.

O próximo passo é, agora, fazer abaixo de duas horas em competição para que essa marca tenha o cunho de recorde mundial oficial. Mas Kipchoge, que já ganhou dezenas de maratonas e medalhas de ouro em Mundiais e Jogos Olímpicos, não quer pensar já nisso. O queniano de 34 anos quer primeiro saborear o seu lugar na história: “Por enquanto, quero celebrar e não quero adivinhar o futuro. Quero celebrar a história. Mais virá depois de descansar.”

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