Rússia avança a sul, mas objectivo principal não mudou: tomar Kiev é tomar o poder

Importa à Rússia fechar o acesso ucraniano ao Mar Negro e ganhar poder negocial, mas os esforços políticos e militares de ambos os lados mantêm-se sobre a capital.

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Soldado ucraniano monta guarda no centro de Kiev ZURAB KURTSIKIDZE/EPA

Tudo mudou, mas nada mudou. Uma semana depois da invasão russa ter começado, as forças armadas e a população ucraniana continuam a resistir de uma forma que surpreendeu de Washington a Moscovo, sobretudo em Kiev e em Kharkiv, mas para o Kremlin o objectivo mantém-se tal como no primeiro dia: entrar na capital e derrubar o Governo.

“Temos de assumir que o pior ainda está para vir”, disse um alto funcionário da presidência francesa a vários meios de comunicação depois de Vladimir Putin ter telefonado a Emmanuel Macron na tarde desta quinta-feira. Ao cabo de 90 minutos de conversa, o chefe de Estado francês exprimiu “pessimismo” com o futuro próximo da guerra. “Não há nada no que o Presidente Putin disse que nos deixe sossegados”, afirmou a mesma fonte.

Ao oitavo dia da ofensiva, com as delegações russa e ucraniana reunidas novamente na Bielorrússia para uma negociação mais uma vez infrutífera, a Ucrânia reconheceu a perda da primeira grande cidade, Kherson, e a Rússia continuou a fazer progressos territoriais na costa do Mar Negro. Com Mariupol cercada e a ser bombardeada junto ao Mar de Azov e com uma coluna a aproximar-se de Mykolaiv, o próximo alvo russo nessa frente deverá ser Odessa, junto à fronteira com a Moldávia e com a região separatista da Transnístria, onde existe uma presença militar russa há 30 anos.

Os avanços a sul têm como objectivo criar “uma ligação de Odessa até ao Donbass” e de “aumentar o poder negocial” da Rússia, diz o major-general Vieira Borges ao PÚBLICO. Mas “o centro da guerra é o cerco a Kiev”, analisa o docente do Instituto Universitário Militar. “A guerra ainda é assim, a tomada de Kiev representa a tomada do poder.”

É opinião generalizada entre militares europeus e norte-americanos que o Kremlin contava com pelo menos duas coisas que não aconteceram. Que a população geográfica e culturalmente mais próxima da Rússia receberia as suas tropas de braços abertos e que a resistência ucraniana cederia como um castelo de cartas em pouco tempo.

Mas quando falha o plano A, recorre-se aos planos seguintes. “Estão outras alternativas preparadas”, acredita Vieira Borges. Sublinhando que “ninguém consegue estar na cabeça de Putin”, o militar considera que as negociações são “uma tentativa de ganhar tempo de ambos os lados”, sem que exista uma verdadeira mudança nos objectivos estratégicos.

“Independentemente da tecnologia, esta é uma guerra convencional”, diz. “A guerra muda, as pessoas mudam, a tecnologia muda, mas há coisas que não mudam. O cerco das cidades continua a materializar a conquista.”

Toda a atenção política e militar continua a recair sobre Kiev. A coluna russa nos arredores move-se lentamente, os ucranianos guardam trunfos para o assalto. “Quando os carros de combate ultrapassarem um determinado limite, aí é que o material melhor entra em acção”, comenta o major-general.

O tempo joga a favor da Ucrânia. Enquanto a capital não for tomada, Volodimir Zelensky continuará a surgir aos olhos ocidentais como um herói e a guerra mediática continuará a ser ganha pelo seu país. Isso muda no instante da sua deposição, porque “tomar o poder pressupõe tomar também o domínio da informação”, diz Vieira Borges. Mas nesse momento, como já tinham dito ao PÚBLICO outros militares, a invasão terá deixado para trás um banho de sangue e o Presidente ucraniano poderá ser visto como um mártir.

Insurgência por uma década

Se for bem-sucedido, o eventual assalto a Odessa, que é esperado pelos habitantes da cidade desde há vários dias, fechará o acesso ucraniano ao Mar Negro e permitirá criar um corredor contínuo de influência russa desde a Transnístria até às autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk, recriando assim a histórica região da Nova Rússia (Novorossiya).

Mas, sobretudo, deixará tropas russas junto às fronteiras de países que integram ou são parceiros da NATO, como a Roménia, a Turquia e a Moldova. “Isto é um problema existencial para os russos. O seu grande objectivo é impedir a Ucrânia de aderir à NATO”, avalia o major-general na reserva Carlos Branco, que trabalhou para aquela organização. A invasão russa aconteceu agora porque “Putin percebeu que o tempo estava a jogar contra ele”, opina.

O militar faz notar que “as forças russas estão quase exclusivamente a leste do Rio Dnieper”, à excepção da coluna parada às portas de Kiev, e que “os ataques feitos a ocidente foram fundamentalmente a instalações militares de aviação”. Isto pode significar que a ideia do Kremlin é “alargar a sua presença até ao rio”, anexando toda essa zona directamente, e “criar um governo-fantoche em Kiev”, diz Carlos Branco.

É a Rússia que decide até onde quer ir, sublinha o ex-agente da CIA Douglas London num artigo publicado na Foreign Affairs, mas nenhuma opção parece boa. “Se a Rússia limitar a ofensiva ao leste e sul, um governo ucraniano não vai deixar de lutar. Terá apoio militar e económico do estrangeiro e o apoio de uma população unida. Mas se ocupar grande parte do território e colocar um regime fantoche em Kiev, começa um conflito mais prolongado e espinhoso. Putin enfrentará uma longa e sangrenta insurgência”, escreveu.

Nesse caso, alerta Emily Harding, especialista em Segurança Internacional do norte-americano Center For Strategic and International Studies, “os membros da NATO têm de estar preparados para dez anos de apoio aos ucranianos”, escreveu no Politico. “Talvez seja uma realidade dura de aceitar”, conclui, mas a alternativa será “uma Ucrânia plenamente nas mãos de Moscovo e uma ameaça russa a pairar sobre a Moldova e a frente oriental da NATO.”

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