Em Kherson, faltam água, comida e remédios, mas sobram corpos por identificar

Um habitante descreve cenas de caos e pânico nas ruas, incluindo pilhagens. “Estamos a ter enormes dificuldades em recolher e sepultar os mortos, distribuir alimentos e medicamentos, recolher lixo...”, diz o chefe da administração regional.

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Imagens de videovigilância mostram veículos de combate russos na praça central de Kherson, na quarta-feira EyePress News/Reuters

Quase 24 horas depois de o Exército russo ter afirmado que conquistara Kherson, a cidade do Sul da Ucrânia estrategicamente localizada na foz do rio Dnieper, o presidente da câmara confirmava esta quinta-feira a perda da capital regional, numa mensagem em que se referia à presença de “convidados armados” num edifício da administração e dizia que tinha sido imposto um recolher obrigatório entre as 20h e as 6h. “Não temos Forças Armadas na cidade, só civis e pessoas que querem viver aqui”, sublinhou Igor Kolikhaiev, explicando que não fez promessas aos russos, pedindo-lhes “simplesmente para não dispararem contra as pessoas”.

“Estamos a ter enormes dificuldades em recolher e sepultar os mortos, distribuir alimentos e medicamentos, recolher lixo...”, descreveu. Num comunicado divulgado pela mesma altura, o chefe da administração regional, Guennadi Lakhuta, dizia que as forças russas tinham “ocupado completamente” a sede do governo regional

Ouvido pela CNN, um habitante da cidade com uma população de quase 300 mil pessoas falava de cenas de caos e pânico nas ruas, com algumas pessoas a tentarem encontrar bens de primeira necessidade. Alimentos e remédios, especialmente insulina (depois de várias farmácias terem sido pilhadas), eram muito difíceis de encontrar. O mesmo residente descrevia ainda pilhagens por parte dos militares russos.

Kolikhaiev sublinhou também a falta de energia e as limitações na distribuição de água, explicando que funcionários da autarquia tinham tentado arranjar linhas em postes de electricidade derrubados e canos danificados, mas foram obrigados a fugir quando se viram alvo de disparos de franco-atiradores.

Iulia, uma ucraniana francófona que vive nos subúrbios de Kherson com o marido e a filha de oito anos, contou à rádio France Info que os tiroteios continuavam e as lojas estavam fechadas, mostrando-se angustiada em relação ao futuro imediato.

“Não há medicamentos. O exército russo roubou tudo o que pôde das lojas, nomeadamente álcool. Também roubaram a nossa bandeira”, denunciou. “Não podemos sair porque a cidade está cercada. Não vamos sair de casa, vamos ficar com o que temos. O que teremos daqui a dois dias, daqui a cinco dias? Não sabemos.”

De acordo com Kolikhaiev, os combates pelo controlo da cidade deixaram igualmente corpos espalhados pelas ruas. Na véspera, o autarca afirmara estar “à espera de um milagre” para recolher corpos e restaurar serviços básicos.

As armas pesadas usadas pelos russos deixaram muitos dos mortos irreconhecíveis, disse Kolikhaiev, numa entrevista citada pelo diário The New York Times, explicando que estavam a ser enterrados em valas comuns por voluntários. “Muitos dos corpos ficaram desfeitos”, afirmou. “Se pudermos tirar uma fotografia, faz sentido tentar identificá-los, mas quando isso não é possível pomo-los em sacos e enterramo-los dessa maneira.”

Mais do que imagens de destruição, de Kherson chegaram vários vídeos (cuja localização foi confirmada) onde se vêem tanques e soldados russos na praça principal da cidade. Num deles, gravado já na quarta-feira, um civil agita duas bandeiras ucranianas diante de três tanques, junto à sede da administração regional. Outras imagens sugerem que as bandeiras estavam inicialmente nas mãos de um militar russo até que um grupo de civis se aproximou para as recuperar.

A conquista de Kherson, primeira cidade ucraniana de dimensão significativa a passar para o controlo russo, representa uma vitória estratégica. Por um lado, a localização ao longo do maior curso de água do país, o Dnieper, dá acesso a vários pontos importantes do interior da Ucrânia.

Mas Kherson, uma zona de construção naval e centro económico importante para a Ucrânia, permite ainda aos russos acederem à Crimeia (a sul) que anexaram em 2014, e à cidade portuária de Odessa (a ocidente), podendo ser mais uma etapa para controlar a região do Mar de Azov. A leste continua a batalha pela cidade de Mariupol, o principal porto ucraniano no Azov, alvo de intensos bombardeamentos. Com Mariupol, o Exército russo conseguiria assegurar a continuidade territorial entre a Crimeia e os territórios separatistas do Donbass.

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